“Energúmenos de verde e amarelo”, solo de Hugo Possolo, irrompe na programação da 25ª edição do Festival Satyrianas como um espetáculo coerente, político e extremamente necessário. Dentre tantas razões, porque o ator e palhaço se dispõe a apresentar uma sorte de escancaramento arquetípico de figuras que possuem, em comum, um elemento um tanto quanto particular: são simpatizantes, partidárias, devotas, “nem contra, nem a favor – muito pelo contrário” do pluralíssimo e nefasto arcabouço de pautas e argumentos reivindicados pelos núcleos de extrema direita ascendentes no Brasil.
Por meio do encadeamento de cenas curtas, nas quais traz à ribalta um sem-fim de figuras esdrúxulas que encarnam, em maior ou maior medida, a grande estupidez a que se refere Hugo Possolo, “Energúmenos de verde e amarelo” incita a plateia ao riso delirante – bem como à mudez da comoção – ao cruzar uma dramaturgia prenhe de anedotas, descrições e comentários que constituem uma imensa barafunda de bizarrices. O sofisticamento narrativo, daí então, incide principalmente no modo com que o palhaço evidencia o contexto a que se refere: ao tornar tais figuras protagonistas da chacota, Hugo Possolo alcança, na corda bamba da zombaria, comunicar à plateia que os “dignos de chacota” somos nós, o público que ali está – apelando, com sutileza e argumentação, à necessidade de que também nós possamos nos responsabilizar, imediatamente e para ontem, pelo nascimento soturno do monstro.
Em “Energúmenos de verde e amarelo”, Hugo Possolo é Roberto, um clássico “tiozão do Zap” que critica a imprensa, que acredita que a terra é plana e redonda – “como uma pizza”, em brilhante alusão ao jargão político/futebolístico tão recorrente no linguajar noticiero do Brasil –, que o Golpe de 1964 teria sido uma Revolução, mas cuja preocupação verdadeira e contumaz diz respeito ao fato de sua esposa, Edilene, ter lhe posto cornos com um tal de Wilson. Mas Possolo também é um pastor charlatão e midiático, que acredita no agro – que é tech, que é pop, que é tudo! – e que prega a religião do dinheiro; um homem que descreve minuciosamente as violências cometidas quanto à sua companheira, até o definitivo assassinato da mesma; um professor de cinema que apresenta, metaforicamente, uma barafunda de pensamentos que, no final das contas, mais confundem do que elucidam; um pai conservador e preconceituoso que não admite que o filho possa ter ideias e ser feliz; bem como um standuper cuja vida é tão desinteressante, mas tão desinteressante, que seu relato culmina em uma longa e divertidíssima cena sobre o achamanto de um cu. Lembremo-nos, afinal, de que a fixação anal é mesmo característica recorrente dos grupos que se encontram sob o exame de Possolo, que num louvável exercício de jogo com a linguagem, logra trazer o tema à baila com a devida comicidade e acidez.
Possolo é, também, Deus: um Deus beligerante, que anda armado, que perde a paciência e que gosta do vil metal – a nítida e lamentável fusão da Teologia do Domínio com a Teologia da Prosperidade, tão reivindicada pelo neopentecostalismo que, dentre outros rincões, invadira sem precedentes também as instâncias do legislativo brasileiro. É o tal Deus do Velho Testamento, da Carnificina, que não vê problema algum em “soltar uns pipocos” nos que atravessam seus caminhos: é um Deus que exalta os homens, objetifica as mulheres – remetendo-se, inclusive, à figura de Eva como “uma gostosa” –, e que não está tão preocupado assim com a benevolência e o amparo aos seus filhos. Em suma, é o Deus dos Energúmenos, criador do glorioso trio de fármacos Prozac-Ritalina-Rivotril, e que prefere ver seu rebanho entorpecido do que pensante.
“Energúmenos de Verde e Amarelo” é uma grande convocação ao esmiuçamento deste imenso colapso político, intelectual, cultural e, por que não dizê-lo, também estético, que se verifica no cenário brasileiro há pelo menos uma década – se remontamos às Jornadas de Junho de 2013, como muitos intérpretes o fazem, como um dos episódios históricos disparadores da balbúrdia. Com destreza e inteligência – ferramental esplêndido tão luminoso no exercício da palhaçaria –, Hugo Possolo entrega ao público um espetáculo completo, desses que não se logra qualificar nem mesmo com a mais rebuscada e cafona frase do portal O Pensador. Pois é preciso olharmos para os monstros antes que eles resolvam olhar para nós: “um homem parado na calçada só significa algo quando se olha de perto”.