FESTIVAL SATYRIANAS
SPRINTS CRÍTICOS | DEUS ATEU

SPRINTS CRÍTICOS | DEUS ATEU

SPRINTS CRÍTICOS


Mais um ano fazendo a cobertura crítica do festival, com foco nos projetos criados especialmente para as Satyrianas, o site Deus Ateu reúne um time de vozes da crítica e promove os Sprints Críticos. Com coordenação de Mariana Ferraz e Marcio Tito, os Sprints são um tipo de resposta sensível e veloz cujo experimento pretende dialogar com as possibilidades trazidas pelas obras e, sobretudo, com a forma de apreciação subjetiva de cada material. Todos os textos serão publicados em até 24 horas após a recepção.


Sprints Críticos | Deus Ateu

Festival Satyrianas – 25ª Edição


DOMINGO – 17 DE NOVEMBRO

“A dona da História” [Teatro Adulto] | por Beatriz Porto [@beatrizpfg] 

O coro de 15 mulheres em cena, que entra todo colorido na vibe aula de ginástica, dá o tom de toda a peça, no melhor dos sentidos. Essa adaptação do texto de João Falcão coloca luz sobre um certo aspecto coletivo da busca idealizada de um amor, especialmente no que isso implica socialmente na vida de uma mulher. Relacionar-se com um homem pauta seus interesses de mundo, sua relação com o corpo, sua percepção sobre o envelhecimento, suas perspectivas de carreira.

A boa execução da cena coral é imprescindível para que possamos nos relacionar com essa ideia de que a “dona da história” poderia ser, de fato, qualquer uma de nós ali na plateia. Por boa execução quero dizer a sincronia na fala, o jogo vivo de atrizes que movimentam uma história, as discordâncias entre as figuras da coletividade, que por vezes relativizam a versão da personagem “oficial”, tornando a história mais múltipla, mais complexa.

O jogo entre as atrizes é muito prazeroso de assistir e a história chega ao público com riqueza de detalhes e de forma muito vívida. Tenho uma única ressalva sobre a peça: o tom melancólico do final fecha as possibilidades de leitura do público e vai na contramão do que a abordagem coral sugere ao longo de todo o espetáculo. É claro que isso é uma escolha do grupo. Mas a centralização da fala na personagem “oficial”, que sugere uma história quase que de superação sobre o amor e sobre finalmente ver sentido na sua experiência ao virar uma personagem de teatro, tende a subjugar outras questões que foram trazidas de forma mais contraditória e pulsante ao longo da peça a um final de cunho um pouco moralizante. As últimas cenas são sempre as mais difíceis mesmo. Ô coisa complexa que é achar o fim de uma peça (e de um texto!).

“Fragmentos de Nelson” [Teatro Adulto ] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1]

Ontem, 16 de novembro, eu escrevi uma resenha sobre um espetáculo que partia de alguns solilóquios de obras de Shakespeare. Hoje, dia 17, assisto “Fragmentos de Nelson”. Também comentei um pouco sobre Nelson Rodrigues ao escrever sobre “O Vestido”. Diferente desta, o diretor Paulo Marcos não cria uma dramaturgia a partir do universo rodrigueano, vai direto a fonte. Foram escolhidos recortes de obras de Nelson Rodrigues, em sua maioria interpretadas em duplas. Assim como Shakespeare, Nelson Rodrigues é um prato cheio para uma jovem atriz, um jovem ator.

E aqui traço um paralelo com um depoimento pessoal, exatos 20 anos atrás, no primeiro Núcleo Experimental dos Sátiros, eu começava minha carreira profissional como ator, com um espetáculo chamado “Ensaio sobre Nelson”, coordenado por Nora Toledo que depois transformou-se em “Rua Taylor n214” dirigido por Alberto Guzik. Em um formato muito parecido, um coro de personagens ficava ao fundo das cenas, aguardando o momento de seu esquete.

Hoje com distanciamento revejo aquele espetáculo e traço convergências com “Fragmentos de Nelson”, alguns núcleos conseguem mais naturalidade na embocadura pedida na dramaturgia de Nelson, como escrevi anteriormente é tênue a linha que separa as doses de melodrama, de tragédia, de comédia. Outras acabam caindo num tom dramático mais frágil, menos apropriado. Mesmo assim é importante que se faça, Nelson é desafiador, que mais jovens atrizes e atores continuem experimentando, dando materialidade para essas personagens.

“Muito Além das Águas” [Teatro Adulto/ Satyrinários] | por Mariana Ferraz [@marianaferrazmf]   

Levando à ribalta narrativas indígenas, e celebrando a comunhão folclórica como numa grande reunião de amigos, “Muito Além das Águas” é um espetáculo que integra a programação Satyrinários da 25ª edição do Festival Satyrianas, e que apresenta duas histórias mitológicas por meio de canções e absoluta força cênica.

Na primeira delas, tem-se uma Cunhã encantada que habita uma praia marajoara e precisa convencer alguém a quebrar o seu encanto – sobretudo, porque sem a cauda que lhe impede da realização de tantos desejos, a Cunhã poderá cumprir com o seu sonho maior: bailar o carimbó. Na segunda, uma dupla de amigos peixes se deixa seduzir pela ideia de cruzar o tal “buraco luminoso”/”misterioso” para conhecer aquilo que existe além das águas amazônicas: daí, então, descobrem a existência das frutas, das cores, de Jaci e Guaraci – a Lua e o Sol –, mas precisam decidir se desejam trocar a imortalidade dos peixes pela liberdade dos humanos. 

Mobilizando cânticos e instrumentos indígenas – bem como compostos por indumentárias e adereços simples, confeccionados à mão, precisamente de onde emana a beleza e a singeleza do trabalho –, o elenco de “Muito Além das Águas” entrega um espetáculo realmente bonito, que encanta tanto como produto cênico como também enquanto celebração ao teatro; já que o grupo, majoritariamente composto por atores e atrizes idosos, exerce com impulso e singularidade sobre a magia do fazer do palco. Destaco, com especial admiração, a atriz Gilda Vandenbrande – que também desempenha como assistente de direção do espetáculo –: subir no tablado aos oitenta anos, com tamanha vitalidade e amor, já é por si só motivo de festa. 

“Muito além das águas” é um espetáculo que vale a pena ser visto. Se bem não estamos diante de uma peça irretocável – uma vez que existem algumas questões técnicas importantes que emergem do trabalho –, adversidade alguma se faz notar diante do trabalho vitorioso e apaixonado do elenco. É, verdadeiramente, uma peça de celebração: da cultura indígena, do folclore brasileiro, de todas as gentes de teatro.

“Muito Além das Águas” [Teatro Adulto/ Satyrinários] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

O espetáculo é surpreendente pela vivacidade dos atores +60, com pitadas de comicidade, ancestralidade e ensinamentos. Toda a trama se passa em um cenário de natureza, em meio a rios, pedras, animais e árvores. Atores indígenas no elenco trouxeram mais verdade às histórias e contos de povos originários do Brasil contados por um narrador principal e ao som de tambores, maracás e alfaias. O trabalho de sonoplastia é impressionante e conta com a participação de todos os atores, incluindo um sonoplasta. 

Apesar do texto não ser excepcional, a temática do sagrado, dos encantados e das peripécias vividas por peixes, guerreiros e criaturas marinhas envolvem e trazem reflexões. O segundo conto, em particular, constrói a história de dois peixes que saem do seu habitat em direção ao buraco luminoso e descobrem novas formas de vida. Em uma espécie de “Mito da Caverna” , os peixes se transformam em humanos e veem esse mundo pela primeira vez: frutas, o sol e a lua. Um novo mundo, novas linguagens e novas responsabilidades – os dois peixes em forma de humanos devem escolher entre a imortalidade das águas e a liberdade da terra. 

No final, os atores fazem um apelo para salvarmos a Amazônia, enfatizando a importância de tratar da fauna e flora brasileiras, como fazem os povos originários. Certeiro, divertido e cativante.

“Fluxo” [Teatro Adulto] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1

“Fluxo” é um espetáculo vivo, ele está vibrante, presente. E não existe melhor presente em ir ao teatro do que receber isso (deveria ser o óbvio?). A peça retrata histórias da quebrada, das realidades que o elenco encontra em seu cotidiano, mas também mistura utopias e distopias, sonhos e pesadelos. O espetáculo vibra porque cada palavra do texto está sendo dita com propriedade, com jogo, com escuta. Vibra porque não é vômito, fala desenfreada, grito sem sentido… é leitura atenta do tempo que vivemos, do tempo que somos. É técnica e transformação, se o ator sobe na perna de pau não é só para se mostrar, mas está dentro de um contexto de desequilíbrio ébrio da narrativa, e depois se propõe a dançar funk com as pernas de pau é porque já está brincando com os próprios elementos de cena. E tocam piano, violão, cantam bem, afinad_s.

Alguns dos depoimentos poderiam cair num tom piegas e sentimental, mas eles não deixam cair para esse lado e resgatam um humor debochado, até de seus próprios conceitos e discussões. Não é um discurso teórico, ou aquela fala só pontua uma das lutas… “Fluxo” abarca diversas lutas e não tem medo de ser plural, aqui leio uma das potências das novas gerações, a capacidade de aglutinar linguagens e criar algo muito particular, é uma nova fase de antropofagia que estamos vivendo. E o elenco em “Fluxo” bebe dessa fase, é construtor dessa fase. Misturam o hip hop com o teatro Fórum de Boal e tudo é dito olho no olho, no corpo pintado, tatuado, o corpo que dança e que faz teatro, entra e sai do fluxo, contrafluxo, sempre contra a corrente, “sempre é bom estar contra as correntes”.

“Não dê doces aos bichos” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [@blogaus]

Tendo como ponto de partida o texto O casal Palavrakis da encenadora e dramaturga espanhola Agelica Liddell, a montagem Não dê doces aos bichos, apresentada na programação do Festival Satyrianas, nos mergulha em um universo obscuro e inquietante. Um mundo distópico e fragmentado é apresentado ao público que vai montando o quebra-cabeça da narrativa através de pistas colhidas nos desenhos cênicos ao longo do percurso dramatúrgico.

A encenação é dinâmica e percebe-se uma urgência em apresentar ao público a história do casal na forma como os atores enunciam os textos. O coro dos atuadores parece ser uma massa só que vai se desdobrando nas personagens e composições de imagens, que aliás é o ponto alto da montagem, que alcança níveis poéticos muito interessantes como quando todos os homens do elenco fazem o Senhor Palavrakis conversando com a barriga grávida de sua esposa, cobertos por um tule vermelho criando assim uma espécie de placenta com muitas cabeças. 

Imagens assim são uma constante no espetáculo que foi feito como resultado de uma pesquisa do curso de teatro da Cia. Os Satyros, e como venho acompanhando o trabalho da Companhia há algum tempo – tanto os espetáculos dirigidos por Rodolfo García Vásquez, como também as montagens resultantes dos cursos dirigidas geralmente por integrantes do grupo –, percebo que há uma assinatura de encenação nos trabalhos, com elementos que aparecem em diversas delas, como aspectos de espaços imersivos para a encenação, a utilização de iluminação alternativa, o uso do coro como condutor da narrativa, entre outros. Acredito que em termos de estética, como diz o ditado popular, a Cia. está “fazendo escola”.

“Que Xou da Xuxa é esse?” [Teatro Adulto] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

O espetáculo belíssimo é uma leitura dramática e autobiográfica da infância do ator Gustavo Parreira, que atua na peça em conjunto com a personagem que representa a sua mãe, ora a sua avó, ora o médico que lhe dá o diagnóstico de deficiência. É uma imersão com o contato que ele teve com a Xuxa e suas canções, e o quanto ela representou um lugar seguro, de refúgio para o menino que teve sua infância atravessada pela morte da mãe, florescimento de uma sexualidade e identidade de gênero não normativas e descobrimento de uma deficiência física. 

O cenário minimalista, com duas cadeiras e os textos, influenciou para uma aproximação muito maior do público com a sua história – em alguns momentos pareceu uma conversa. O menino enfrentou seus desafios de uma forma poética e única: inventando palavras para coisas que sentia, tal qual Manoel de Barros. A ansiedade ele chamou de “formigueiro”, as inúmeras cirurgias que passou por conta da paralisia cerebral, chamou de “terremoto”, a anestesia, de “brinquedo de sonhar”, entre outras miudezas infantes que tiraram boas risadas. Aparece, em determinado momento da peça, as indagações em paralelo sobre gênero e sexualidade, já que sua avó o repreendia sobre ter cabelos grandes e usar roupas femininas – inspiração mais que certeira da própria Xuxa (cantora ídolo do Gustavo).

O tema religioso também aparece na leitura. Como muitas pessoas quando descobrem alguma deficiência, o ator passou por uma certa canonização de seu ser por ser PCD. Frases como “Você está predestinado” ou “Essa é a sua missão na Terra” ou até “Isso é uma provação divina”, estiveram presentes em toda sua infância e vida adulta. No final, ele faz o que chama “peraltagem de palavras” quando diz que Deus somos todos nós presentes ali, reinventando significados. 

Um ponto de atenção é a presença de um intérprete de libras durante todo o espetáculo, tornando a peça acessível para parte do público PCD. Para além disso, mesmo sabendo que se trata de uma programação que abarca o tema acessibilidade, seria interessante expandir o acesso a esse tipo de ferramenta (intérprete, por exemplo) para todas as peças, tratando ou não de temas como deficiência.

Por fim, Gustavo invoca o mais recente meme da Xuxa “Que show da Xuxa é esse?”, presente no TikTok, onde uma menina se revolta por não conseguir entrar no show da cantora. Para ele, a vida é um Show da Xuxa e, às vezes, a gente não entra. Além de usar o ato teatral para se reencontrar com sua falecida mãe, e agradecer pelos sacrifícios.

“Memórias duma Baobá” [Teatro Adulto/SatyriBlack] | por Beatriz Porto [@beatrizpfg] 

Baobá é uma árvore suntuosa de origem africana que, na cultura yorubá, representa a conexão entre terra e céu, entre mundo material e sobrenatural, a ligação com os tempos imemoriais, o tempo do mito. Cortar um Baobá é vê-lo sangrar, tal qual os povos diversos do Brasil que tiveram a conexão com suas raízes historicamente interrompida.

A peça/contação de história é um resgate de memória. A atriz Isabel Oliveira conta e reproduz áudios de histórias de mulheres negras ligadas às suas tradições familiares, aos seus aprendizados passados de geração em geração. Vemos hoje que estes são saberes que sobrevivem nas margens, nas brechas de uma estrutura social que insiste em mantê-los subalternizados e que relembrá-los faz parte de um dever histórico.

A peça, então, nos convida a fazer esse resgate. A atriz canta e conta histórias enquanto passa um café a ser compartilhado com o público, numa atmosfera intimista e de diálogo que é capaz de quebrar pré-conceitos. Nesse sentido, vou observar aqui dois pontos estéticos que acredito que possam contribuir para a construção do espetáculo. São eles:

 Dado o formato que sugere uma conversa aberta com o público, noto que o uso excessivo das gravações provoca um distanciamento entre a atriz e o espectador. A gravação é fixa, tem menos interferência da memória oral, da palavra escolhida para contar naquele dia, da ressignificação que uma história sofre ao ser revivida por outra pessoa. 

Além disso, o formato da contação de história nos dá algumas liberdades que são interessantes de serem exploradas. A personagem pode ir e vir no corpo da atriz, que pode ter consciência de estar diante do público desde o começo. Afinal, ela veio aqui com uma missão histórica, que ela sabe perfeitamente qual é. Quando Isabel apresenta a peça nos agradecimentos finais, ela se coloca de forma extremamente contundente, e imagino que essa postura da artista que pensa, da atriz que decide contar uma história importante, pode aparecer desde o início, sem precisar se esconder inteiramente atrás da personagem. A atriz é, afinal, também uma Baobá, ela também faz conexões entre mundos, entre mito e espectador, entre culturas, entre povos. Essa postura aparece com força, por exemplo, quando podemos ouvir a voz que falha a construção de personagem ao cantar “eu quase que não consigo ficar na cidade sem viver contrariado”.

No mais, que a peça curitibana circule, que ganhe ainda outras cidades, outros estados e que, tal qual a árvore, cresça, se reconecte, que reposicione o tempo. É sempre bonito ver um grupo de artistas que viaja: é que a história vem de longe, vem de sempre e vem querendo ser contada.

“E se sempre fosse dia?” [Teatro Adulto] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

O trabalho em questão é um caso particular que merece considerações acerca dessa curta resenha, já que nasceu no meio do ano, fez algumas apresentações, passou por reformulações e deve fazer seu debut dia 04 de dezembro na Galeria Olido. Na Satyrianas, o grupo resolveu mostrar apenas o primeiro ato. A encenação e dramaturgia são assinadas por Morgana Oliveira Manfrin, da Coletiva Profanas.

Enquanto a encenação transcorria, algumas referências me viam a mente:  “Ensaio sobre a Cegueira”, o filme, na versão de Fernando Meirelles e “Branco: o cheiro do lírio e do formol”, peça que estreou no Centro Cultural São Paulo em 2017 e causou mal estar ao colocar artistas brancos questionando o racismo. Morgana é branca, assim como basicamente todo o elenco. Criou uma história distópica para falar sobre racismo estrutural, apontando o “pacto da branquitude” como a grande doença dos nossos tempos a devastar territórios.

O primeiro desafio da direção é criar uma unidade num elenco bastante diverso. Ao tentar dar conta de muitas pautas, o texto se torna confuso e a montagem se torna hermética. Se Morgana orienta de forma satisfatória a movimentação deles em cena e o trabalho vocal, por outro lado alguns aparecem sem tônus, o que enfraquece a cena como um todo. Penso que a dramaturgia deveria ter sido pensando nas possibilidades de expandir a história desses corpos e não há intimidá-los.

Um exemplo disso é a presença do jovem empregado da fazenda (William Lansten), que tem um personagem que num primeiro momento esboça desejos por homens, para pouco tempo depois vemos ele se confessando  ao padre, por desejar mulheres mais velhas. Primeiramente, tal mudança não é explicada a contento; depois, soa maniqueísta descrever o drama desse personagem que parece regido pela moral e bons costumes cristâ. Pode ser gay? Não. Pode ter uma namorada mais velha? Não. 

“Ontem eu deixei de me matar mais hoje eu taco fogo na minha prisão”, diz a atriz negra do elenco – o que pode parecer um tanto panfletário. Se bem é verdade que Morgana tem uma boa carpintaria, procura transgredir em seus trabalhos com seu coletivo, trabalha com a diversidade de forma respeitosa e inclusiva, também é certo que aquilo que propõe, talvez, necessite de uma subversão – na cena, no elenco, no texto – preocupada com os temas urgentes da sociedade e com a inserção de todes na cena. 

“Calma e Constância” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [@blogaus] 

Duas mulheres em trânsito pela vida se encontram aleatoriamente pela cidade em um ponto de ônibus. Ambas estão de mudança, e ambas têm em suas histórias uma relação afetuosa com o nordeste. Elas carregam uma mala apenas, contendo tudo o que cada uma delas têm e no meio de uma discussão acabam trocando as malas por engano e só constatam isso depois de terem se separado pela cidade afora.

A peça, apresentada com muita garra no meio da Praça Roosevelt durante o Festival Satyrianas, era constantemente atravessada pelos elementos da praça, pessoas passando, o som que vinha da tenda próxima, o vento gelado que passava por nós de tempos em tempos, no entanto as atrizes jogavam com esses elementos e levaram sua narrativa até o final com bravura, o que é emocionante de ver, a dedicação e disposição no fazer artístico.

Destaco aqui uma imagem que me chamou muita atenção no espetáculo, quando uma das atrizes faz um montinho de areia que pega em um caminhão de brinquedo tirado da mala, diante de uma imagem de Iemanjá, coloca sal grosso, joga um balde de água e pula sete vezes, achei poético ver isso ali no meio de todo aquele concreto.

“A história de Mateus e Catirina” [Teatro Adulto] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1]

Homenageando e respeitosamente bebendo da cultura popular nordestina dos mamulengos a Cia. Arte & Riso conta a história de Mateus, um cuidador de boi em uma fazenda e sua esposa grávida, Catirina, que está com um desejo muito insólito. Partindo da busca do jovem marido para conquistar o desejo da mulher até ter que lidar com todas as consequências de tal ação, durante toda essa jornada vai encontrando bonecos tradicionais como o Coronel Pacarú, a Velha Benzedeira, Padre e o Diabo.

Último espetáculo a ser resenhado, domingo, 19h, local: Praça Roosevelt, tempo: esfriando. Mais cedo não assisti um dos espetáculos mais conceituais do festival (creio eu) “Isso não é Teatro” estava marcado para acontecer na praça Roosevelt, às 14h… de fato isso não é teatro aconteceu… Pois bem, demorei um pouco para encontrar onde a trupe estava montando o cenário, medo de não acontecer teatro de novo, mas encontrei, depois deslocaram o cenário para outro local, a peça começa…poucas pessoas a minha volta, no decorrer da narrativa as pessoas foram ficando, se sentando, e se encantando, no fim tinha um público considerável a minha volta. É uma boa forma de finalizar essa experiência dos sprints, do olhar de fora, do buscar a sensibilidade do outro e dialogar sobre como foi a experiência de trocar com a sua. 

A peça “A História de Mateus e Catirina” tem um encanto particular, a atriz Lu Zitei tem um timing cuidadoso para a comédia. Os elementos cênicos são bem cuidados, pensados. Os fuxicos, os santos, os bonecos todos pensados com carinho. Nos agradecimentos, finalizam pedindo licença e agradecendo mestres e mestras da cultura popular nordestina.

“A Casa de Bernarda Alba” (Elenco Masculino) [Teatro Adulto] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

O grupo Os Satyros, sob direção de Rodolfo Garcia Vázquez, encena a obra mais emblemática do autor espanhol Federico Garcia Lorca. Além do risco, o diretor gosta de trabalhar com elencos grandes e jovens e para atiçar seu público e dificultar os que se propõe a pensar sobre teatro ofertando desafios e opções para a compreensão de suas encenações, criou três versões. As imagens dialogam com a estética kitsch, queer, barroca. A peça, que estreou no palco do SESC 14 Bis, foi adaptada para o espaço do grupo com eficiência, tornando a peça mais intimista. Suas cenas de coro (quando um grupo de pessoas age em conjunto na cena) são sempre bem executadas, fazendo essa opção se tornar uma marca. 

Se as montagens geralmente “pecam” pela ausência de composições de personagens a contento, a encenação proposta brinda o público com imagens interessantes e instigantes. Neste caso não é diferente, pois seu coro de mulheres enlutadas se impõe de forma poderosa em cena. “A casa de Bernarda Alba” foi escrita em 1936 e traz para cena Bernarda e suas cincos filhas – todas solteiras e consideradas desinteressantes pelos homens da redondeza. Além delas, a peça tem mais três personagens femininas: a avó, a criada e a governanta, La Poncia, que na versão assistida ficou a cargo de Diego Ribeiro, que compõe com muita propriedade sua personagem, se destacando positivamente do todo.

“A Casa de Bernarda Alba” reforça o sistema patriarcal e o casamento como uma das poucas possibilidades para que a mulher saia da casa da família, além de enfatizar que a velhice não é bem quista e muito menos ser feia e solteira. Afinal, para que serve uma mulher, que não para servir o homem? Numa crítica às avessas, a montagem reitera o texto do autor para provocar o público a pensar na atualidade dele e do qual refém as mulheres permanecem nesse sistema. Cabe a Bernarda se impor diante de todas para reproduzir o papel do marido que acabara de falecer. Ou seja, mesmo o universo feminino reproduz o patriarcado, na primeira oportunidade. É como uma sina. Como escapar dele?

“Menino negro com o mar revolto” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [@blogaus]   

O texto desta leitura dramática é construído a partir das memórias e histórias de Manuel, um jovem angolano que mora aqui no Brasil a cerca de dois anos. A leitura em si apresentava ele, o Manuel, em cena, sentado, com uma roupa cinza que o deixava bastante elegante lendo as palavras do autor Rudinei Borges. 

As palavras do texto geram imagens bonitas da infância de Manuel, do cotidiano da cidade de Benguela onde morava, das brincadeiras com a mãe, entre outras. Mas enquanto a leitura acontecia eu tinha dificuldade de entender algumas partes do texto por conta da pronúncia diferenciada do português. Porém houve um momento em que Manuel tirou os olhos do texto e encarou o público para explicar o que significava um determinado termo que aparecera no texto, e então tudo mudou, a mágica se fez e as imagens saltavam do corpo de Manuel de forma muito mais fluida do que nas palavras do texto. Terminada a explicação ele retomou a leitura e a dificuldade de entendimento voltou.

Quando acabou a leitura do texto, que foi breve, Manuel abriu a palavra para o público, para que esse fizesse perguntas e então mais uma vez fomos presenteados com a fluente narrativa de Manuel, seu ponto de vista sobre a situação política de seu país, seus sonhos e suas sensações de morar em uma terra estrangeira. Foi muito bonito ver essa narrativa, e me fez refletir sobre como um texto escrito por outrem, mesmo que muito bem escrito como parece ser este texto, fica vazio de imagens quando não cabe no corpo e vivências da pessoa de onde esta história parte. Foi imensamente mais imagético os momentos que Manuel falava com suas palavras do que os momentos em que ele lia uma construção textual que parece não ter ressonância com sua forma de construir narrativas.

“Vagamundo” [Teatro Adulto] | por Beatriz Porto [@beatrizpfg] 

Os palhaços Baltazar, Gaspar e Belchior olham o mundo. 

Certa vez aprendi que, para o palhaço, tudo acontece sempre pela primeira vez. Isso faz dele uma figura inocente e curiosa pela vida, e, por isso, capaz de nos fazer ver de novo hábitos que automatizamos no dia-a-dia sem nem pensar. Ver de novo no sentido paradoxal de estranhar e ao mesmo tempo reconhecer.

Em Vagamundo, Baltazar, Gaspar e Belchior estão com fome. Precisam passar o chapéu para comer. É disso, afinal, que palhaço vive: de fazer rir para comer. Rir é urgente. Nessa peça, o fazer rir como profissão é justamente a lente com a qual somos convidados a olhar o mundo de novo pela primeira vez.

A urgência em fazer rir é contraposta por cenas costuradas nas sutilezas, na coragem de bancar o tempo necessário para encarar o abismo da injustiça, da fome e da morte. É justamente encará-lo que faz os palhaços começarem o dia de novo – depois de dividirem uma azeitona em três partes de 33,33333% – em busca de um dinheiro no chapéu que os tire daquela situação. 

Vagamundo apresenta os palhaços que nos pegam desprevenidos na emoção: no riso ou no espanto, no riso ou na emoção, no riso ou na indignação. Talvez esse seja o momento apropriado do texto para revelar que eu fui a “pessoa que ri estranho” da plateia. 

Dito tudo isso, gostaria de colocar uma questão a ser ponderada, para a qual não tenho uma resposta certa. A figura do cego vulnerável é uma personagem que traz um tipo de humor incômodo. O que me deixa em dúvida sobre onde exatamente está a questão é que a cena tem uma saída dramatúrgica interessante, porque no final o cego é o esperto, e não o que é feito de bobo. Mesmo assim, algumas piadas no decorrer da cena ainda estão voltadas para a cegueira em si do personagem, sugerindo o riso sobre sua condição. Me parece que, justamente pelo olhar tão sensível que a peça tem sobre para quem é o mundo, essa talvez seja uma cena a ser revisitada no sentido de entender do que se está fazendo rir a cada passagem dela. Este é certamente um exercício constante que devemos fazer no humor e que aponta para as mudanças nas formas de ver o mundo – de novo e pela primeira vez, como os três palhaços fazem com tanta graça.

“Hors Concours” [DramaMix] | por Mariana Ferraz [@marianaferrazmf]

“Hors Concours”, texto de Fabio Brandi Torres apresentado durante a programação DramaMix, revela a história de Quim, um ator de teatro que acredita nunca ter sido devidamente reconhecido por seu trabalho, e que vive de modo ranzinza e complexado à espera de um grande prêmio que possa reconhecê-lo, assegurá-lo ou legitimá-lo publicamente em seu ofício. Após uma série de frustrações, Quim se depara com a figura de uma pessoa em situação de rua, uma espécie de mago das urbes, que oferece a ele o estabelecimento de um pacto para que o mesmo não apenas vença um prêmio importante, como para que sua vida se altere em absoluto. Daí, então, não apenas as promessas pactuadas se materializam, como a vida de Quim efetivamente se transforma – e se transtorna.

Tendo em vista que o texto apresentado diz respeito a um roteiro de cinema, considera-se que as escolhas de organização do espaço para a leitura encenada do mesmo foram bastante felizes: todo o elenco esteve presente no palco durante o exercício – sem que houvesse a típica e bastante desagradável movimentação de entradas e saídas de cena, que lamentavelmente costuma acompanhar um contingente importante de leituras de roteiros de audiovisual –; e muitas das marcações físicas e de objetos foram levadas à cena, garantindo ao público uma experiência um tanto mais estruturada daquilo que virá a ser o produto cinematográfico derivado de “Hors Concours”. 

Destaco, especialmente, as dinâmicas de cena estabelecidas pelos atores José Netho, que interpreta Quim, e José Trassi, seu agente e parceiro. Se a dupla logrou entregar tamanha sinergia numa leitura encenada, sem a mágica parafernália de recursos que apenas o cinema pode prover, é certo que o encontro entre Netho e Trassi diante das câmeras também suscitará uma experiência absolutamente prazerosa ao espectador.

“Hors Concours” é um trabalho dirigido por Erika Altimeyer, e conta também com Débora Carolyne, Pedro Henrique Moutinho, Keila Tasquini e Emmilio Moreira na integração do elenco. É mesmo um texto e tanto – e quem não o viu em cena, felizmente, poderá vê-lo nas telas. Sorte, a nossa!

“A Mulher que Amava Todos os Homens” [DramaMix] | por Alexandre Gnipper [@alexandregnipper]   

“A Mulher que Amava Todos os Homens” é uma celebração audaciosa da liberdade feminina, conduzida pela figura provocante e multifacetada da Marquesa de Sade. Em formato de leitura dramática, a peça acompanha as aventuras amorosas da protagonista por um mundo onde o desejo e a autonomia se encontram.

A guitarra ao vivo, com suas camadas eletrônicas, não apenas cria uma trilha sonora hipnotizante, mas também amplifica o caráter transgressor do texto. A fusão entre música e palavra dá à obra uma atmosfera quase ritualística.

Libertina e libertadora, a leitura dramática provoca a plateia a reavaliar tabus e celebrar a complexidade do feminino, tornando-se um convite instigante a se perder nas histórias ousadas da Marquesa.

“Promissa Terra” [Dramamix] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1] 

O que prometemos a nós mesmos? O que nos prometem? O que cumprem, o que não cumprem? E o que fazemos a respeito? A dramaturgia em processo de Bruna Menezes propõe essas leituras metafóricas e literais do conceito de Promessa. Temos duas personagens em cena, Elisa e Josué, com elas seguimos um diálogo cartesiano, entrecortado por outras vozes, por outras promessas de vozes. Voltamos a Elisa e Josué, Elisa que antes de ser Elisa nos traz um ideal de terra prometida e nos dribla em virada de perspectiva, na primeira cena. Voltamos a Elisa e Josué. Elisa que conversa com Josué, Elisa que tenta conversar com Josué.

Escutando o diálogo dessas duas personagens não deixei de pensar na frase: ‘é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo’. Elas estão nesse limbo beckettiano, o que fazer? Como é um projeto em processo, fica a curiosidade para saber o que vai acontecer com a personagem que se despede e vai cair numa realidade virtual. Nos perderemos com ele? Ou é isso, e ele se foi para sempre? Que promessas ainda estão por vir…?

“As minhas adoráveis escolhas erradas” [DramaMix] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

Em encenação do texto de Djalma Júnior, os atores apresentam um cenário que é uma espécie de cozinha de açougue, onde falas repetitivas e compulsórias, tiques e questionamentos aparecem a todo momento. As roupas brancas e de plástico bolha trazem um ar sensorial para a peça, que se inicia com a atriz principal se questionando sobre o fazer artístico: A arte é um conto de fadas? É uma escolha? Viver e sobreviver. Enquanto isso, o ator corta pedaços de papéis retos de forma compulsiva, assustando a moça. Ela não sabe onde está, mas ao longo da história, percebemos que se mistura com os comportamentos do moço. Em alguns minutos está vestindo o mesmo avental de açougueiro e picando os mesmo pedaços de papel, repetindo ” PEDIDOS E ESCOLHAS” a cada corte. 

       Existe a crítica a um tipo de mercantilização de tudo nessa obra, como o projeto de vida, os sentimentos, escolhas e principalmente a escala de produção e alienação em que vivemos. As redes sociais aparecem nos projetores como produtoras dessas escolhas inconscientes que são feitas por nós, tudo é algoritmo. 

       É um texto muito inteligente, porém não óbvio, denso e desconfortável. A atuação colabora para que saiamos com muitas referências, melhores atuações que vi no festival.

“Jamie Oliver” [DramaMix] | por Mariana Ferraz [@marianaferrazmf] 

O texto “Jamie Oliver”, escrito e interpretado nesta leitura cênica por Alain Fresnot, narra a história de uma mulher que, numa ligação telefônica, resolve contar a uma amiga sobre o desenvolvimento de uma estranha e bastante particular obsessão: juntar selos oferecidos numa promoção de supermercado para trocá-los por uma coleção de facas assinadas pelo chef de cozinha Jamie Oliver.

Vestindo uma espécie de camisola/chemise confeccionada pelo avô do próprio Fresnot há cerca de 60 anos, a mulher apresenta uma série de divagações, análises e reflexões sobre as facas que lhe vão sendo entregues como brindes conforme a mesma avança na obtenção dos selos: há facas que são “pequenas, mas com presença”; outras que provocam “muito vai e vem”; dentre outras qualificações que, por meio de artifícios bem humorados e inteligentíssimos, sacam risos inesperados e escancarados da plateia. 

Inesperado, também, é o motivo pelo qual a mulher estava tão comprometida com a coleção de facas assinadas por Oliver – que, afinal, não conseguira concluir por ter perdido o prazo de troca da última leva de selos por brindes –: apesar de não dizê-lo explicitamente, a mulher afirma que, afinal, foi mesmo um grande alívio não ter conseguido trocar a última remessa de selos, pois “não queria envolver o Jamie Oliver num crime conjugal”.

O único defeito do texto de Alain Frasnot é ser tão curto: precisamente por ser tão envolvente e inteligente, proporcionando ao público uma experiência realmente prazerosa, é que se esperava por uma duração maior. Mas caso o autor não pretenda expandir este mesmo texto para poder levá-lo futuramente à cena, faço votos expressivos de que Jamie Oliver lance também uma coleção de cutelos, tesouras, espátulas, descascadores, moedores e outros instrumentos culinários – pois não é possível que nossa querida assassina em potencial se contente em ter apenas a série de facas do cozinheiro britânico. 

“Tinder” [DramaMix] | por Douglas Ricci [@blogaus]    

Esta bem humorada leitura do texto de Vinícius Piedade, que também interpreta um dos dois personagens do texto, traz uma interessante discussão sobre a forma como temos vivido os nossos afetos nestes tempos que correm, extremamente pautados pela tecnologia, onde aplicativos de serviços que podem ser baixados em nossos dispositivos eletrônicos tendem a transformar-nos em meros produtos em uma prateleira.

O mote da peça apresenta dois personagens, Pedro e Rodolfo, sendo o primeiro uma espécie de analista de RH que faz entrevistas de emprego e Rodolfo é o cara que ele vai entrevistar. No entanto é um encontro marcado por um aplicativo de relacionamento, ou melhor, um date, como tem sido chamado os encontros atualmente, ou pelo menos o Rodolfo vai até o Pedro para que seja um date, e é surpreendido pela forma como a coisa vai se configurando, com aspectos muito mais de uma entrevista de emprego para ocupar um determinado cargo desde que se cumpra a determinados requisitos.

Acho muito certeira a escolha do tema e também a forma como o dramaturgo a coloca no texto, em consonância com a realidade e boas pitadas de ironia que levam o público às gargalhadas em diversos momentos do diálogo entre os dois personagens. Aliás, as gargalhadas vêm fácil porque é muito fácil de se identificar ou como entrevistador ou como entrevistado, pois sabemos que estamos sempre nesses dois lugares quando o assunto é vida afetiva.

Espero que possam montar em breve o espetáculo, tenho a impressão de que será um grande sucesso de público, pois esse assunto, no recorte crítico  que o autor coloca no texto, é dos assuntos mais constantes nas mesas de bar pelo mundo afora.

“Vidas Intersexo” [SatyriTrans] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

Em “Vidas Intersexo”, parte da programação do SatyriTrans, aconteceu uma conversa bastante didática e imersiva sobre pessoas Intersexo. Dan e  Pâm, membros da ABRAI (Associação Brasileira Intersexo) propuseram essa roda de conversa a fim de desmistificar e tornar acessível as informações sobre o tema – que é pouco discutido, até no meio LGBT+, por preconceito e medo de violências.  Uma pessoa intersexo é aquela que nasce com características sexuais que não se enquadram nas normas médicas e sociais para corpos masculinos ou femininos, e existem mais de cem váriações biológicas que podem indicar intersexualidade. 

      Na ABRAI, os membros contam que recebem muitos relatos violentos e parte de violação de direitos, principalmente na infância. Muitas pessoas intersexo passam por cirurgias de “adequação de sexo” e são literalmente mutiladas, sem a possibilidade de escolha. Eles reiteram que é muito importante esperar que a criança se desenvolva e possa escolher com qual gênero e sexo se identificam e se querem ou não fazer cirurgias. Só nos hospitais mais famosos de São Paulo, essas cirurgias sem consentimento da criança acontecem pelo menos três vezes por semana. Os pais muitas vezes não sabem o porquê seus filhos passaram por esses procedimentos, e o corpo médico esconde de forma bem perspicaz a intersexualidade usando nomes científicos. 

       Foi discutida também a  dificuldade em acessar alguns serviços, como criação de certidão de nascimento (que só opera de forma binária homem-mulher), RG, CPF, acesso a aposentadoria, dentre outros tantos. Apenas em 2024 uma pessoa intersexo conseguiu tirar a certidão de nascimento contendo “Intersexo” no campo sexo – tardiamente, visto que ainda não existem legislações que protejam essas pessoas. 

         Por fim, a ABRAI faz um trabalho de conscientização e de acolhimento dessas pessoas (crianças, famílias e adultos) e dá visibilidade aos corpos dissidentes intersexo, o que gera polêmica em muitos espaços e é uma disputa política. Debate muito necessário, super completo e ainda sanaram todas as dúvidas do público com destreza. Sigam @abraintersexo no instagram e consumam o livro “Intersexualidade: Estudos Acadêmcos”, de Dionne do Carmo Araújo Freitas e Thais Emilia de Campos dos Santos.  

“BLABLACAR” [AutoPeças] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

  Em uma limusine branca estacionada próximo à Praça Roosevelt, o espetáculo propõe um jogo teatral de improviso dentro do carro, como se os espectadores fossem passageiros. Cada dupla de atores se intercala nos horários da peça, sendo então narrativas diferentes a cada horário – interessante por dar liberdade de criação para os próprios atores, que devem ser perspicazes na criação de diálogos imediatos. Ainda assim, apesar de divertida a narrativa que tratou de temas LGBT+, com duas bichas indo para a praia, faltou algum direcionamento de roteiro e o timing das piadas se perdeu e/ou foi repetitivo. O cenário – dentro do carro- poderia ter sido melhor aproveitado, de forma a fazer os espectadores interagirem com o espaço tão incomum de uma limusine no centro de São Paulo. 

       Por fim, interessante a forma cômica como os dois atores levaram mesmo os momentos de silêncio entre o público. 

“BLABLACAR” [AutoPeças] | por Alexandre Gnipper [@alexandregnipper]     

BLABLACAR transforma a Praça Roosevelt em cenário e personagem, criando um ambiente claustrofóbico e carregado de realismo dentro de uma limusine parada na rua, amplificando a sensação de vivacidade.

Com diálogos que transitam entre o trivial e o perturbador, a narrativa expõe as camadas sutis e complexas da percepção do abuso — tanto para quem o vive quanto para quem o observa. O elenco, em uma interpretação meticulosa, desafia o público a confrontar seus próprios preconceitos e zonas de conforto.

Minimalista na forma e ousado no conteúdo, BLABLACAR é um soco silencioso, provocando reflexões que continuam ecoando muito além da Praça Roosevelt.

“Uma mulher do meu tamanho” [PerforMix] | por Alexandre Gnipper [@alexandregnipper] 

Uma Mulher do Meu Tamanho” é uma celebração multifacetada de coragem, autenticidade e brilho interior. Com uma performance visceral e encantadora, a artista tece um ritual de autoafirmação que pulsa vida e poesia. Cantando, declamando e compartilhando depoimentos pessoais, ela constroi um espetáculo que conecta profundamente público e performers.

A banda, com sua sonoridade vibrante e afiada, não é apenas um acompanhamento, mas uma extensão da energia da performer, criando uma experiência sensorial e imersiva. A fusão de linguagens — música, poesia e narrativa — transforma o palco em um espaço de transformação e reconhecimento da força que habita cada um de nós.

“Uma Mulher do Meu Tamanho” é, acima de tudo, um ato de coragem luminosa, que nos convida a celebrar a potência do ser e a vibrar com nossa própria essência.

SÁBADO – 16 DE NOVEMBRO

“Stonewall50 – Uma Celebração Teatral” [Teatro] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1] 

O título já entrega, e não tem medo dessa antecipação, é preciso celebrar. Da luta cotidiana da população LGBTQIA+ em conquistar espaços, direitos – por vezes nem conquistar, construir – à luta para sobreviver em um mundo que anuncia climas (mais) tensos logo a frente, deve-se celebrar a resistência, a existência. Para isso o ator e autor Thiago Mendonça e o diretor e autor Renato Farias costuram eventos históricos, experiências pessoais, utilizam canções como pontes dramatúrgicas, mas não por isso sem um significado particular.

Algo inegável, e que Thiago utiliza muito bem, é seu carisma em cena, ao contar ao público descobertas pessoais do processo, ou da vida, ou dos processos da vida. Nos transporta com ele para outros espaços e tempos, e questiona: e se estivesse nesse mesmo espaço em outro tempo. Também vai costurando pequenos fetiches particulares com figuras a serem homenageadas. Nos faz rir com suas pequenas grandes descobertas e nos faz refletir o quanto nos expressamos para o outro ou só internalizamos desejos e quem realmente somos?

O ataque à boate de Stonewall, em Nova Iorque, em 28 de junho de 1969 hoje é símbolo de resistência, foi nessa data que frequentadoras/es da casa disseram não aos ataques, às violências, às propinas e revidaram, criaram barreiras de proteção contra os ataques policiais, jogaram pedras e moedas em seus algozes. A pergunta que desencadeou tudo, de uma pessoa sendo atacada por policiais: “Vocês não vão fazer nada?” segue martelando… Tanto segue que em 12 de junho de 2016 a boate Pulse na Flórida é atacada, onde morrem 50 pessoas. O quanto estamos fazendo? O quanto precisamos fazer mais? Sabemos que são muitas questões e que precisamos enfrentá-las na prática. Nós, das artes enfrentamos toda essa tempestade com sensibilidade, com ferocidade, mas buscamos um primor na troca. E com tudo isso nós celebramos, é preciso celebrar, é preciso celebrar aos aprendizados que tivemos com Phedra D. Córdoba, Marsh P. Johnson, Renato Russo e tantas e tantos.

“Somos todos Chico Rei” [Teatro Infantil/SatyriBlack] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

Vindo de Jundiaí, “Somos todos Chico Rei” foi uma das poucas atrações voltada ao público infantil nesta edição da Satyrianas. O Núcleo Preto de Artes Afro-Diaspórica usou a imagem do homem negro (Chico Rei) que consquistou a liberdade e autonomia ao poder cuidar da própria história, para metaforizar outras histórias de superação da comunidade negra. Os quatros atores sob direção de Vive Almeida, a partir da dramaturgia de Flávia Tháina, cantam e brincam a memória de seus ancestrais. É honesto e simples, mas abusa do didatismo.

De certa forma a dramaturgia de Flávia não oferece muitas opções para que a direção avance e fuja de marcações bastante comuns em peças infantis. Vive abusa dos jogos infantis entre seus atores e a grande questão é que eles não parecem tão alinhados, já que havia certa impressão nas coreografias, o que deixava visível as marcações. Talvez fosse mais produtivo que a direção deixasse seus atores agirem com mais naturalidade para que os mesmo não ficassem refém de um esquematismo que em vez de deixar o trabalho fluir, engessa.

O trabalho busca fazer com que o público pense em seus ancestrais e o quanto foi importante suas ações. O momento em que os atores param com a cantoria – talvez excessiva – e oferecem um depoimento pessoal, é  talvez a parte em que o público é fisgado. Não à toa, dos 4 artistas, 3 citaram suas mães, como a figura ancestral a ser reverenciada. É importante olhar para o passado e pensar em toda a trajetória construída. O Núcleo Preto procura então lutar contra o apagamento de suas histórias. Um bom estímulo para crianças negras que têm a possibilidade de crescer, conscientes de suas possibilidades. E se empoderar é uma delas.

“Atos e Desatos” [Teatro Adulto] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

O espetáculo, apresentado diretamente na praça Roosevelt, teve algumas interferências de volume – outras intervenções acabaram se sobrepondo à voz dos atores, mas nada que não aconteça naturalmente no teatro de rua. “Atos e Desatos – Lembram deles?” resgata narrativas e trechos de obras de Shakespeare, invocando temáticas atuais ao meio dos antigos escritos shakespearianos, de forma a conversar com o público mais intimamente. 

São alguns monólogos de atores distintos, representando Lady Macbeth, Yorick, Calibã, Sycorax, Iago, Júlio César, Cleópatra e Rei Lear. Com esse revisitar dos personagens do passado, os atores passam por temas como poder, desejo, questões de gênero, amor, trabalho, racialidade, colonialismo, ciúmes, luxúria, morte e política. Com o objetivo de tecer e entremear esses fragmentos de textos, a Companhia Engendrada consegue linkar objetos do passado como uma coroa ou uma roupa de rei com a contemporaneidade da bandeira do Brasil, ou de grafismos indígenas na pele da atriz. Essa dicotomia presente/passado nos mostra como são vivas as memórias de um passado distante e como reproduzimos padrões de anos (talvez séculos) atrás. 

Por fim, de forma bela, temos o contato com uma diversidade de atores de variados recortes, para contar uma história longa e perene, de um clássico do teatro que precisa, como qualquer clássico, ser revisto de tempos em tempos. 

FéMenina Palhaçada Cabaret Show” [Teatro Adulto] | por Alexandre Gnipper [@alexandregnipper]

O cabaré de palhaçariaCabaré Fémenina” explora o universo da palhaçaria através de uma perspectiva feminina e autoral. As cenas solo de cada palhaça, repletas de personalidade, são conectadas por um fio condutor poético que transforma o espetáculo em um mosaico vibrante de humor e sensibilidade.

A atmosfera construída com cenário e iluminação, que dialogam de forma lúdica com as performances, potencializa a experiência como um todo. Cada objeto, gesto, detalhe visual e sonoro reforça o caráter poético da apresentação, valorizando a força criativa das artistas, cuja proposta de constante diálogo e interação com o público dão um senso de imersão e presentificação.

Mais do que um cabaré, “Cabaré Fémenina” é uma celebração da arte de fazer rir com inteligência, sensibilidade e autenticidade, nos provocando a rir das nossas ridiculices, dos nossos desajustes e desamores de maneira inspiradora e encantadora.

“Amor” [DramaMix] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

Não tem jeito, todo artista haverá de questionar o que é o amor um dia e tecer considerações públicas a respeito dele. Foi assim também para Marcos Fábio de Faria que escreveu “Amor”, texto sobre o almejado sentimento que todos desejam e nem todos têm a chance de encontrar, que ganhou leitura dramatizada dentro da programação DramaMix com direção de Alliyellow. Os personagens lidos por Davi Leocádio e Brenda França, dois jovens negros, não leem apenas o texto, como se colocam a respeito do que pensam sobre o amor. Assim como a direção, todos são negros. 

Então estamos falando do amor a partir da perspectiva da vivência de corpos negros, porém isso não impossibilita que, independente da cor da pele, o público se identifique. O texto esboça uma proposta interessante ao supor se questionar os afetos a partir de situações abusivas e violentas. Porém essa proposta não é trabalhada de forma contundente a propor uma reflexão profunda acerca “desse” amor, fazendo com que não consigamos entender qual o posicionamento que o autor tomou a respeito desse sentimento. A leitura foi curta e houve uma tentativa (bem vinda e simples) de uma proposta corporal e de cenário. Vale ressaltar que os corpos falam muito mais em silêncio do que se justificando – e creio que a direção sacou a potência dessa opção. 

“60 anos depois” [Teatro Adulto] | por Mariana Ferraz [@marianaferrazmf]   

A Companhia de Teatro Cena Onze, grupo mato-grossense que integra novamente a programação do Festival Satyrianas – e que, na última edição, causou eloquentes alvoroços com a apresentação do irretocável espetáculo “Bereu” –, traz agora à ribalta a peça “60 anos depois”, dedicada à história e à memória dos movimentos de resistência à Ditadura Militar brasileira (1964 – 1985) no contexto geográfico do estado de Mato Grosso.

Baseada principalmente nos relatos do professor Waldir Bertulio, sobrevivente da opressão e dos anos de chumbo que assolaram o país durante o referido regime, a dramaturgia de “60 anos depois” é tecida a partir de cenas dedicadas à personagens matogrossenses que operaram não apenas na fortaleza local, mas que também tiveram sua importância na batalha contra o autoritarismo a níveis nacionais e internacionais. Foi o caso, por exemplo, de Carlos Reiners, “o último socialista do Pantanal”, que teria recebido o Comandante Che Guevara numa breve passagem do mesmo por Cuiabá enquanto este deslocava-se rumo à Bolívia; de Gilney Viana, aliado de Carlos Marighela; ou de Sônia Lafoz, militante e companheira de Carlos Lamarca na Vanguarda Popular Revolucionária; apenas para citar alguns dos nomes presentificados pela Companhia.

Destaco o trabalho do ator Ronaldo José, em sua assombrosa interpretação do Capitão Silva, comandante de operações de tortura e personificação rotunda dos algozes que encabeçaram a Ditadura Militar no Brasil; além da atriz Cléo Oliveira – tanto na cena em que dá vida à Sônia Lafoz, como também àquela em que aparece como Cremilda, numa espécie de transe perturbador entre a loucura e a sanidade do homem encarcerado. Vale pontuar ainda, enquanto homenagem e louvor, a presença do próprio professor Waldir Bertulio ao término do espetáculo, que se soma ao elenco para proferir algumas palavras de testemunho e resistência.

Entregando novamente um excelente trabalho, a Companhia de Teatro Cena Onze se despede da 25ª edição do Festival Satyrianas instaurando, na memória do público assistente, a comoção e a inquietude provocadas por “60 anos depois”. Principalmente porque, após o ressurgimento da extrema direita no país há cerca de uma década – e intensificada, como bem se sabe, no contexto do Golpe empreendido contra a então presidenta da república Dilma Rousseff –, é imprescindível que nos recordemos, sempre e a cada possibilidade, da tragédia violenta, criminosa e absolutamente inadmissível que assolou o país nos tempos da Ditadura Militar. Porque 60 anos é ontem, e é necessário lembrar para não esquecer: ditadura, nunca mais. E viva o teatro mato-grossense! 

“Bodas de Sangue” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [@blogaus] 

A Cia. Divino Ato, da cidade de Ribeirão Preto, felizmente trouxe sua elegante montagem de “Bodas de Sangue”, obra de Federico Garcia Lorca ao Festival Satyrianas deste ano. O texto, um clássico da dramaturgia ocidental, nos apresenta uma trama onde quatro jovens se veem arrastados por paixões, que tentam inutilmente freá-las, e que os leva a um trágico desfecho. 

Na versão do Divino Ato, dirigida por Rafa Corrêa, os elementos de encenação conversam de forma harmoniosa transportando o público para ensolaradas e calorentas terras espanholas. A encenação nos contempla com precisas imagens que corroboram nessa narrativa, tais como quando entramos no espaço cênico e vemos uma mulher sovando um trigo em uma tigela, e sobreposta a ela, no fundo da cena, a silhueta de uma noiva que irá pairar na encenação durante todo o percurso dramatúrgico, me levando a refletir sobre a condição de subjugamento das mulheres desta história, mesmo quando parecem empoderadas como a mãe do noivo, por exemplo.

São poucos os elementos de cenografia, precisos, poéticos e úteis na encenação. Em diálogo com o bem feito e bem pensado figurino, bem como a certeira iluminação, corroboram na feitura exata das imagens criando jogos de cores em cena e nos oferecendo a possibilidade de fazer correlações entre elas.

De nada serviria tudo isso se o elenco não segurasse  o espetáculo com ritmo e a precisão dramática que o texto de Lorca exige, e o elenco do Divino Ato não deixa a peteca cair – levando com a paixão necessária suas visões desses personagens de sangue quente. Acredito que a harmonia que vejo na encenação da peça tem muito a ver com um trabalho de teatro de grupo, que no interior do estado é bastante profícuo em diversas cidades, estabelecendo elos criativos entre seus integrantes e possibilitando instigantes exercícios estéticos, como este trabalho da Companhia.

“O Vestido – Uma Tragédia Musical Carioca” [Teatro Adulto] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1] 

Estamos dentro de um universo rodrigueano, percebemos isso por vários elementos: os figurinos, os nomes das personagens, a formação familiar… Aliás, a homenagem está desenhada de início ao trazer (enquanto notícia popular, na voz de dois jornalistas) a morte de Alaíde, na Glória – é o universo de ‘Vestido de Noiva’ pedindo licença. E passeando por esse universo a Cia. Dons de Teatro Musical nos apresenta a história de Euzébio, único filho homem em uma família composta pela mãe viúva e sete irmãs. Seu tio, Augusto, se muda para a casa da família desestruturando o que estava construído até então, e aí assistiremos todas as obsessões rodrigueanas – desejos, incesto, morte…

Em paralelo a esse estudo do universo de Nelson Rodrigues, o coletivo tem um trabalho vocal potente (um destaque para a voz do ator Matheus Souza). Porém aqui o estilo musical destoa um pouco da atmosfera das tragédias cariocas, a escolha por um caminho mais popular, num sentido contemporâneo musical, me faz pensar que essa escolha pode ter como desejo aproximar também o público, acostumado com essa atmosfera. Mas questiono se não pode ser interessante também fazer uma imersão nos ritmos musicais da época, brincar também com esses elementos na sua composição.

Por fim, brincar com esse universo rodrigueano também pede uma interpretação bem específica (ou, costumeiramente, se vai para um estilo interpretativo específico). A dramaturgia de Nelson Rodrigues possui um pleonasmo em sua embocadura, é desafiador entender e jogar com isso em cena. O que nos faz pensar e montar e rever Nelson ainda no século XXI é porque as polêmicas, as escolhas dramatúrgicas dão abertura para um mundo mais profundo e complexo, arquetípico e não estereotipado. Sempre um cuidado que deve ser tomado quando investigamos esses recônditos porque o entendimento das relações (familiares, no caso) podem ficar frágeis, e perdem possibilidades de se verticalizarem.

“O que seriam de nós sem os doces” [Teatro Adulto] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

A adaptação do texto ” O Casal Palavrakis”, de Angélica Liddell, conta com uma envolvente narrativa de suspense que escancara violências de gênero e delírios sobre infâncias sombrias. Elza e Mateo, ambos representados por pares de atores e atrizes que se intercalam, são o casal principal da trama, desenrolada em um cenário lúdico, regado de pirulitos gigantes e cores pastel. 

     Tudo começa a partir de um concurso de dança, entre músicas dos anos 70 e 80, onde memórias se entrelaçam e o cotidiano do casal é exposto. “O que seria de nós sem os doces” denuncia como corpos na infância são vulneráveis a violências constantes produzidas pelos pais. Em que medida somos resultado de nossos traumas de infância? 

      O Sr. Palavrakis personifica o machismo, o silenciamento e a opressão, ao mesmo tempo que é vítima também desse mesmo cis-tema heteropatriarcal. Ele se vê perturbado pelas próprias violências que produz contra a esposa e a filha. Os doces são símbolos, durante todo o espetáculo, das infâncias roubadas por estupros e surras – eles amenizam essa dor social. 

Através de histórias sangrentas, o Casal Palavrakis nos tira de nossos lugares comuns para refletir. Esse casal é retrato de muitos casais que conhecemos – quem nunca sofreu ou conhece quem sofreu abuso dentro de casa? Necessário, pulsante, visceral. Atuações jovens e maduras em conversa corporal com o tema proposto, que começa como um sonho e termina em pesadelo.

“Olhar Agudo” [Teatro Adulto] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1] 

Temos em “Olhar Agudo” o início de um projeto, e é um início promissor. Em cena o jovem ator Tato Amorim, em primeiro plano, com sua cadeira de rodas, ao fundo uma figura em penumbra, escondida atrás de um tecido verde. É Beatriz Amaro. Durante a apresentação, a figura ao fundo será antagonista de Tato, impedirá sua passagem, tentará forçá-lo a seguir pelos caminhos que ele não quer. Criando uma partitura física performativa, os corpos em cena estão realmente em um embate, representação da angústia de Tato.

Uma escolha acertada da direção de Luciana Birindelli é a limpeza estética do espaço cênico, nada mais potente dos que os corpos em cena, principalmente dentro desta proposta. Um corpo vivo que expõe sua presença em um depoimento pessoal, mas esse depoimento não se pretende ilustrativo, quer partir de metáforas, do subjetivo – ao mesmo tempo tão sólido.

Fica a curiosidade de saber para onde levarão a continuidade de sua pesquisa, que outras relações estéticas, dramatúrgicas, podem surgir. Seja de Tato com a cadeira de rodas, seja com a figura da penumbra, ela pode ganhar novas camadas? Expandir-se para outros signos? O verde será uma escolha cromática a ser problematizado com sua contraditoriedade? Esse olhar atento proposto no título pode se abrir para camadas interessantes.

Importante também pontuar a importância desse espaço aberto na 25ª Edição das Satyrianas, a Satyribilidade – que se abram mais espaços para públicos e para artistas PCD apresentarem suas obras. Para que suas criações sejam vistas, ouvidas, tocadas e continuadas.

“Lembranças boas demais para esquecer porém ruim demais para serem lembradas” [Teatro Adulto] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

No último dia de trabalho numa locadora, um homem pode escolher apenas uma fita para levar de lembrança. Gabriel Cersosimo, o ator, não parece ter idade pra ter frequentado uma locadora, ou mesmo ter pego o auge da “era das locadoras” onde as pessoas brigavam por uma devolução e sim, havia um frenesi pelo lançamento, por um poster que seria jogado fora, por tentar comprar um VHS do seu filme preferido e por aí vai. Digo isso pois há quase 30 anos passei quatro anos da vida dentro de uma locadora como funcionário. Ai, que “porre” que era ter que lidar com clientes que não tinha educação e entregavam a fita sem rebobinar! Essas e outras peculiaridades saem da boca do ator e acabam soando nostálgicas para a maioria da plateia – inclusive eu, claro –, o que dá uma sensação de que o público está ganho pela memória emotiva que essa sensação ocasiona. 

Gabriel causa empatia, tem vigor, leveza e conduz com humor sutil a “brincadeira” de embaralhar suas memórias enquanto lida com fitas cassetes antigas em um diálogo direto com a plateia. Como se nós fossemos seus antigos clientes e ele apresentasse alguma confidência. Não necessariamente isso acontece, mas parafraseando o título da peça é uma “lembrança/associação que me vem à mente agora boa demais para esquecer  e nem tão ruim para não ser lembrada”. Os títulos dos filmes que Gabriel tenta organizar em sua despedida do emprego tem nomes atípicos, provavelmente fragmentos de “estórias” (com ‘e’ mesmo) que o ator insere na dramaturgia da peça, que de ficcional, num primeiro momento, se torna um biodrama do meio para o fim. Não à toa, os filmes que identificamos no monte exposto na cena, são os da Disney e “Casper – Gasparzinho, O Fantasma Camarada” que foi lançado em 1995. Gabriel já havia nascido nessa época? Me pergunto enquanto ele relata sua relação com o filme.

Por se tratar do relato da própria história, a aproximação com a tal lembrança boa demais para esquecer, porém ruim demais para ser lembrada faz com que o ator ofereça dois momentos em seu solo. O primeiro em que ele parece um jovem atendente de locadora, uniformizado para divulgar um dos filmes dos “Minions” e o segundo em que o ator se desloca dessa suposta persona ficcional e revela qual das fitas que gostaria de carregar contigo. Detalhe: ela nunca esteve na prateleira de uma locadora. Nessa altura do campeonato o público já está seduzido pela narrativa do ator e o desfecho acontece de forma tocante e sincera. Esse filme estaria em qual sensação da locadora Gabriel? Drama? Infantil? Documentário?

Com direção de Davi Novaes, “Lembranças…” tem dramaturgia do próprio ator, que em cena parece como aquelas fitas que colocamos para rebobinar e que vai rapidinho, pois o rebobinador está limpo e novo. Sua jovialidade e entusiasmo em contar a história faz com que ele se ausente de realmente sentir o que está falando. São tantas memórias posta em frases curtas, que o efeito do tom cômico seduz o ator, que em vez de abrir um caminho com calma, respirando junto com seu público para que eles também teçam seus roteiros de lembranças, passa “correndo” e afoito pelas suas memórias. Se fosse um atendente de locadora real a indicar um filme num final de semana num bairro qualquer, das duas, umas: ou você levaria o filme pela alegria esfuziante do atendente, ou não se deixaria seduzir com o entusiasmo do funcionário.

“Xeque Morgue” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [@blogaus]

A partir de um conto de Edgar Alan Poe, a peça Xeque Morgue desvenda o mistério do brutal assassinato de Madame Lespanaye e sua filha. Para tanto, lança mão de uma encenação dinâmica e vibrante, ocupando toda a caixa preta do espaço Satyros.

Já na fila para assistir ao espetáculo a plateia é surpreendida por sons que vêm de dentro do espaço cênico reservado para a encenação. Gritos, palavras desconexas e as movimentações dos personagens que saem de suas casas/camarins já nos insere dentro do universo da peça e quando adentramos ao espaço cênico nos vemos adentrando a cena do crime, com liberdade para circular pelo espaço, observando os detalhes que se espalham por toda a sala.

A encenação mantém o público livre para explorar recortes das cena do crime e dos depoimentos dos personagens que vão nos dando flashes de informações sobre o que aconteceu para que assim começarmos a criar um fio narrativo dos acontecimentos. É interessante a forma como o público é instigado a explorar esses detalhes narrativos, sabendo que o tempo para esta exploração é limitado.

Depois deste primeiro momento em que o espetáculo parece já ter estabelecido um formato de encenação, o público é conduzido a se sentar em uma plateia tradicional e acompanhar o desfecho do mistério que se estabelece no palco. Esse tipo de estratégia se mostra muito eficaz no que diz respeito ao envolvimento do público com a história, pois quando sentamos para ver o final, depois de toda a experiência pelo espaço cenográfico imersivo, já estamos capturados pelo enredo, muito mais do estaríamos se a estratégia de encenação fosse o convencional palco italiano já desde o início.

Vale destacar, também, o brilho no olho, a gana e a vontade do jovem elenco em dar cabo da narrativa: é visível a entrega e envolvimento deles na execução da proposta de encenação.

“Atos e Desatos – Lembram Deles?” [Teatro Adulto] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1] 

Sempre retornamos ao bardo! Não é surpreendente, um jovem coletivo teatral decidir iniciar sua história partindo de solilóquios de William Shakespeare. Desafiador, de fato. É chover no molhado sublinhar que os textos que tinham importância fundamental na cultura e na sociedade inglesa do século XVI continuam sendo necessários no século XXI. Shakespeare sempre tem o que nos dizer, na quadra histórica que vivemos não percebemos similaridades entre os discursos dos homens no poder com a ganância de Macbeth? Sem esquecer das grandes questões da alma, como a inveja, o ciúme, o medo… faziam sentido séculos atrás e permanecem.

Para isso, a Companhia Engendrada utiliza o texto em uma porção de formas, seja mantendo uma tradução mais ‘clássica’, digamos, ou adaptando para uma linguagem mais informal, popular (Shakespeare era popular em sua época). Para além da escolha da forma como as palavras serão ditas, bom pontuar o quão importante é como se apropriar dessas palavras com suas diversas perspectivas. Essa é a genialidade de Shakespeare e o grande desafio para intérpretes. Uma das múltiplas camadas que sempre me chama a atenção é a metalinguística, o quanto o autor dava aulas de interpretação em seus textos. Quem se posiciona mal em cena morre como um rato, não é visto. Quem não se pronunciar direito não será ouvido, é como pronunciar palavras ao vento. Quem se pavoneia demais em cena acaba perdendo o sentido do que está fazendo… e aqui é uma linha tênue e complexa, quando acreditamos que estamos alcançando um estado trágico,  podemos passar do ponto e transformar tudo em drama. É um risco enorme, Shakespeare melodramático perde todas as suas imagens e potências.

O ambiente externo escolhido para ser feita apresentação tem um lado positivo, é ágora, espaço de atravessamento do povo, para alguns textos como o de Brutus encaixa-se perfeitamente, porém tem um lado negativo, em alguns momentos perdia o texto por conta do barulho. Para além destes textos clássicos e de suas personagens clássicas, pontuo a junção de falas de Calibã e Sycorax para fazer uma ponte com os povos originários. Bons estudos e que encontrem camadas cada vez mais profundas em sua pesquisa.

“Vôo em Cácere” [Teatro Adulto] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

Em uma apresentação intimista e curta, a atriz Yasmin Castro faz, de forma sensível, a leitura de alguns trechos de “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus durante a peça. O cenário é composto por um projetor que passa imagens reais de Bitita, urucum e alguns potes com alimentos e água. 

De forma onírica, a narrativa nos leva para a imagem de cárcere – a personagem está presa em um mundo que a exclui constantemente. Abordando questões de raça e gênero, o espetáculo reitera a força e os desafios que pessoas negras enfrentam em um país fundado no racismo e na desigualdade. 

        A perspectiva bicho x gente está presente desde o início da apresentação- a desumanização de determinados corpos é evidente, principalmente em São Paulo, onde se territorializa grande parte da narrativa. A favela, o hip hop, as manifestações da cultura popular, a saia de chita e o próprio diário são maneiras possíveis de sair da prisão que afugenta a atriz. Por fim, o espetáculo impressiona pela potência dos escritos de Bitita tão bem encenados.

“Oi, tudo bem?” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [@blogaus] 

Duas atrizes entram em cena com roupas típicas de trabalhadores do ramo de serviços em alguma cidade deste país. Uma calça social preta, um tailleur preto, uma blusinha preta. Ah, e um sorriso no rosto. Oi, tudo bem? Oi, tudo bem e você tudo bem? Ninguém realmente quer saber a resposta se está tudo bem de verdade, e as atrizes partem deste princípio temático para desfiar sua crítica a esse mundo que nos estafa com uma absurda escala de trabalho 6×1.

O tema é bom e urgente, diria até que certeiro para essa semana em que este assunto está na pauta como nenhum outro, e a peça apresenta algumas imagens interessantes sobre o assunto, como quando as atrizes começam a jogar dezenas de certificados de cursos aleatórios pelo espaço cênico (e realmente eram verdadeiros, pude conferir um que caiu perto de mim e que datava de 2001), neste momento uma delas diz: esses papéis não servem para nada, apenas para construir o cenário deste teatro. Achei tão poético!

Outra imagem que gosto do espetáculo é quando as duas entram em uma estrutura, que já está em cena desde o começo e que elas a significam como uma prisão e também como uma roda de hamster, ao mesmo tempo em que reforçam o tema do trabalho sem fim, da correria para lugar nenhum.

“A Onça Corinthiana e São Jorge Guerreiro” [Teatro Infantil] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1]

Na peça infantil “A Onça Corinthiana e São Jorge Guerreiro” o enredo é o seguinte: Uma jovem onça revê seus valores e torna-se corinthiana, que tem como patrono São Jorge. Estabelece amizade com toda fauna a sua volta e decide criar um lar para órfãos, para isso terá que enfrentar a Rainha de Copas e a Bruxa Malévola. A protagonista conta com a proteção de São Jorge para enfrentar seus desafios.

Contando com um elenco numeroso de crianças em cena, o diretor e autor Silvio Mello do Teatro Galpão de Itanhaém cria uma bricolagem que parecem improvisações, criações e desejos do jovem elenco. É inegável que a energia em cena é gigante e reflito sobre como canalizar essa energia em cena: um dos caminhos encontrados pela direção é que as personagens estejam sempre em movimento, os corpos poucas vezes suspendem, o que cria alguns ruídos com a dramaturgia.

Por fim, é interessante observar muitos jovens divertindo-se por estar em cena, descobrindo um mundo de imaginação, tendo desde cedo contato com a arte e a possibilidade de potencializar suas sensibilidades e maneiras de ver o mundo a sua volta, respeitando as múltiplas maneiras de existir.

“Peter Pan – O Musical” [Teatro Infantil] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1]

O Grupo Teatral Gorki vem de Ribeirão Preto, iniciou seus estudos enquanto coletivo em 2019 e teve seu trabalho de estreia “Peter Pan – O Musical” em 2022. Eles bebem a obra de J.M. Barrie mas condensam o enredo em um ambiente só, dentro do quarto de Wendy e Joãozinho, um trabalho dramatúrgico cuidadoso em uma adaptação que permite dialogar com as crianças de hoje, sem perder a ligação com o original.

Peter Pan e as crianças perdidas acabam no quarto de Wendy e Joãozinho, pois estão atrás da sombra de Peter. Todas as crianças ficam amigas, porém na sequência o Capitão Gancho e seus capangas também chegam ao ambiente, em busca de Peter Pan. Além das boas soluções dramatúrgicas, o elenco também se diverte em cena, possuem um bom timing para muitas das piadas propostas. Uma pena que ocorreram alguns problemas técnicos e alguns dos microfones não funcionaram, prejudicando um tanto a equalização do musical, porém o elenco seguiu o jogo e com boas projeções. Vale o destaque para a dupla que faz a música ao vivo, com piano e percussão, em muitos momentos em troca direta com o elenco.

Busco me recordar de quando li a obra de Barrie, poucas coisas voltam, foi há muito tempo atrás, porém uma das características que não me esqueço é que o autor faz questão de pontuar de que existe uma espécie de crueldade na criança, e não está colocando isso em termos morais, acaba se tornando uma displicência cruel, não intencional – às vezes vejo adaptações seja em teatro como em cinema e sinto falta dessa outra perspectiva da obra, fica como reflexão ao coletivo, que também se interessa por fundamentos sociológicos e filosóficos em suas pesquisas.

“Seu Manuel” [DramaMix] | por Douglas Ricci [@blogaus]   

O texto Seu Manuel de José Roberto Sadek, apresentado dentro da programação do DramaMix do Festival Satyrianas nos traz a história desse Seu Manuel através das personagens que circundam ele, sua filha, seu neto e sua companheira. Me chama muita atenção essa estratégia dramatúrgica, gosto dessas histórias que vão se fazendo de forma tangencial através de outros conflitos que a circundam.

O texto começa apresentando, como uma espécie de prólogo, o neto de Seu Manuel sendo pego roubando vitaminas em uma farmácia. Depois temos a informação através da mãe do menino, filha de Seu Manuel,  que ele não é exatamente um trombadinha, mas sim um filho que tenta fugir dos pais. Então vemos o menino falando com alguém ao telefone, ele conta que foi pego e pede a atenção dessa pessoa que se recusa a encontrá-lo.

Então temos o grande embate da narrativa, o momento em que a filha de Seu Manuel vai até a casa em que ele está morando em um bairro pobre da cidade, e encontra Elza, uma mulher negra e de origem humilde que é companheira de seu pai há muitos anos. Aqui nos é dado as informações centrais da trama. O fato de Seu Manuel ser um homem que vem de uma classe social alta, de que este deixou o luxuoso apartamento em que morava para viver em uma vila humilde da cidade, bem como a informação de que o neto mora com ele e também de que a filha não aceita a relação do pai com Elza.

O texto apresenta uma maneira interessante de abordar assuntos como diferenças sociais, injustiças e racismo. A atuação dos atores na leitura, especialmente a atriz que joga o personagem Elza, dão uma coloração envolvente para a história. 

No entanto, fiquei curioso para saber o que aconteceu com o neto, uma vez que a história começa com ele, há essa misteriosa ligação telefônica que ele faz e então ele desaparece da trama e a narrativa foca no embate entre Elza e a filha de Seu Manuel. Vem aí?

“A última visita” [DramaMix] | por Mariana Ferraz [@marianaferrazmf]

“A última visita”, texto de Daniel Veiga interpretado pelas atrizes Jhonnã Bao e Gilda Nomacce, apresenta o último encontro de duas mulheres num apartamento situado em um prédio à beira da demolição. Marta, interpretada por Nomacce, é a madrasta de Karina, personagem de Bao: em comum, partilham do luto da morte de Sandra, ex-companheira de Marta e mãe de Karina, que teria sucumbido a uma grave doença quando Karina tinha apenas 9 anos. O que se revela nesta visita, entretanto, é que Sandra jamais estivera morta, mas largara tanto a filha quanto a companheira sem deixar vestígios de seu paradeiro.

Com esta revelação, tem-se uma espécie de ressignificação do luto – que deixa de ser o da morte e passa a ser o do abandono –, na medida em que Marta tenta explicar à Karina que, apesar dos crueis julgamentos da enteada, a culpa pela partida de Sandra não havia sido sua. Enquanto buscam remontar as peças deste angustiante e perturbador quebra-cabeças, escancarando feridas mal cicatrizadas e expondo rancores e discordâncias desagradabilíssimos, um recurso ficcional fantástico embala o diálogo empreendido pelas personagens de Bao e Nomacce: num jogo de imprevisibilidades e melancolias, elementos tais como as rachaduras das paredes do apartamento, os objetos da sala de jantar, o tecido da cortina ou o batente da janela vão se fazendo, se desfazendo e se refazendo na medida em que determinados temas são esmiuçados por madrasta e enteada – marcação, esta, apresentada pela leitura de rubricas, empreendida pelo próprio Daniel Veiga.

Por se tratar de uma leitura cênica, admite-se que determinados aspectos da tensão inerente ao texto, devidamente postos pela vocalização das rubricas, não tenham podido ser alcançados – como é o caso, por exemplo, dos gestos de Marta e Karina quanto ao livro em que ficam guardadas as três únicas cartas enviadas por Sandra desde sua partida; ou as movimentações de Karina ao adentrar os cômodos do apartamento para recolher alguns pertences seus que ainda se encontravam ali. Mas mesmo que se compreenda que tais ausências se devem ao formato apresentado – característico da maioria dos espetáculos que integram a programação DramaMix –, considera-se que o texto de Daniel Veiga possui tantas delicadezas poéticas, tantas sutilezas gestuais, tantas marcações que dizem respeito à colocação firmada do corpo cênico indicadas nas rubricas – que felizmente, reitero, foram lidas por Veiga –, que o fato de o mesmo não ter sido propriamente encenado prejudicou, em certa medida, o estabelecimento de uma aflição melancólica que, ao meu ver, faz-se imprescindível para a construção da atmosfera linguística de “A última visita”. Tanto, que apenas o espectador atento deve ter logrado captar a “reversão” do melodrama: a história, aparentemente, é contada de trás para frente – informação nada relevante, mas que só se faz evidente de fato por meio da entonação empregada por Gilda Nomacce em sua última fala.

“As mulheres do Pau-Brasil” [DramaMix] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

Amigas descontentes com a qualidade disponível de homens no mercado decidem criar uma loja onde se pode adquirir o homem desejado e, assim não ter que se deparar com questões do universo masculino, que convenhamos – segundo as pŕóprias – não dá mais. Mulheres conversando sobre homens de forma “despretensiosa” e colocando em pauta os desejos e anseios, parece com muitas coisas que já vimos por aí. Em algum momento, minha memória me levou para a franquia de filmes “De pernas pro ar” protagonizado por Ingrid Guimarães, que também tem uma personagem feminina em busca da emancipação sexual de outras mulheres.

O texto escrito há muitas mãos, e que foi lido dentro da programação do DramaMix não foi apresentado na íntegra, porém apresentou vários elementos que dão pistas do que o público poderia encontrar em uma possível encenação. São amigas empoderadas dos seus desejos e conhecedoras do pŕóprio corpo diante de uma cartela de homens, que elas gostaria de usar/comprar/silenciar, assim mesmo como elas são objetificadas nas mãos da “macharada”. Essa inversão de valores é boa, principalmente se a tal futura encenação subverter e arriscar colocando os homens como esse produto que pode ficar numa vitrine em exposição, e exposto aos curiosos da mesma forma que o corpo feminino é exposto e vendido em todas as mídias que conhecemos. 

A leitura dirigida por Thais de Almeida Prado, uma das autoras, ousou pouco no formato, já que há muitas cenas que precisam de recursos para serem feitas e um elenco masculino bem maior do que o apresentado. Essa suposta ousadia que a encenação sugere é o que sustenta a curiosidade do público diante de uma dramaturgia que perde fôlego no transcorrer dos fatos, já que não oferece as personagens femininas nenhum arco dramático considerável e/ou algum recurso dramático que fixe a atenção do público na narrativa a espera do próximo acontecimento.

A questão do falocentrismo é abordada na peça para se colocar em xeque justamente a importância desse protagonismo na história da sexualidade humana e no imaginário popular. Tema caro para os homens, que basicamente nunca foi abordado no teatro de forma veemente e explícita. Imagina uma plateia de bailarinas do Faustão e substitua o elenco feminino todo por homens nus: foi assim que imaginei a “Loja do Pau-Brasil” prometida na dramaturgia. A inserção da exposição da vulva no corpo de um homem trans e a possibilidade dele figurar nessa cartela de homens é uma boa provocação, que coloca o público a pensar.

A força da proposta dramatúrgica está justamente na sua subversão e despretensão. Qualquer justificativa de teorização tem que ser bem pensada. Usem sem moderação a manteiga no parceiro e depois o público lida com as consequências. Esse deveria ser o bom teatro, aquele que não antecipa uma consequência, lida com o que ocorrer dos fatos e divide com o público as reverberações. Se a peça será encenada ou não, como isso se dará na prática, ou se a caretice de outros trabalhos que revelam a visão da mulher diante do corpo do homem vai ganhar contornos na cena de forma arrojada, direta e sem escrúpulos, é outra questão. Independente do formato e do grau de risco que se corra, quem não pode faltar no elenco é a presença potente de Nathalia Lorda.

E quando na leitura foi perguntado ao público se alguém se lembrava de algum filme onde um homem é penetrado e sente prazer nisso, pensei em dizer: “Querelle” de Rainer Werner Fassbinder. O que acham?

“Utopia Tech-Feminista” [DramaMix] | por Mariana Ferraz [@marianaferrazmf]    

Nesta encenação operada a partir da adaptação do texto “A representante”, de Yael Inokai, o público se depara com uma sociedade utópica em que eletrodomésticos convencionais já não ocupam o lugar simbólico do exercício da repressão feminina, mas servem como respaldo político para o empreendimento das liberdades da mulher. Em especial, trata-se de uma espécie de aspirador de pó, o ASC, cuja função não é propriamente a de limpar um espaço, mas a de realizar – de modo seguro, lícito e acessível – um procedimento de aborto.

Quem dá voz ao texto é a atriz Maria Galant, que encarna a tal Representante do ASC, cuja função é visitar mulheres – também interpretadas por Galant – que desejam interromper suas gestações por meio da utilização do produto. De modo absolutamente natural, isento de quaisquer polêmicas ou ares clandestinos que, geralmente, abarcam a pauta do aborto, a apresentação normalizada do tema leva à cena uma série de questionamentos, ponderações e reflexões não apenas acerca da interrupção voluntária da gravidez – tema sempre imbuído de contendas e discussões acaloradas, sobretudo com os novos avanços da extrema direita no Brasil e a ocupação de membros de igrejas neopentecostais em redutos importantes da política brasileira –, mas também acerca do tolhimento generalizado das liberdades da mulher.

Em comunhão com o público, o espetáculo se encerra com uma espécie de exercício coletivo em que se propõe apresentar a construção inovadora de uma tecnologia utópica de aborto – escrevendo-o ou desenhando-o num papel que, ao término da sessão, vem a ser “aspirado” por Maria Galant, e que podem ser acessados por meio de um QR Code no dia posterior ao espetáculo. São servidos, ainda, alguns copos de espumante ao público – elemento que, particularmente, me pareceu não integrar sentido ao produto cênico, podendo ser facilmente dispensado ou devendo receber alguma função de significância caso se deseje mantê-lo por ali. Participam brevemente do espetáculo, também, x ator/atriz e performer Arara Xestal, além da própria diretora do trabalho, a alemã Pau Hoffman. 

“Teto” [DramaMix] por Mariana Ferraz [@marianaferrazmf]

“Teto”, texto de Arrigo Barnabé, é a medula deste DramaMix apresentado no Auditório do Teatro Cultura Artística. Quem dá voz à linguagem do mestre é Ju Alonso, que assume a narrativa de uma mulher que discorre sobre o misticismo dos rituais de purificação, indagando-se – e propondo tal querela ao público – quanto à verdadeira eficácia de tais cerimônias ou simples métodos de limpeza para tornar o corpo menos profano, menos mundano, menos sujo.

Sentada diante de uma mesa em que se encontram apenas um côco verde, duas velas de faísca e um par de óculos escuros, Alonso quer saber se “haverá incenso suficiente para essa limpeza” – afirmando, em contrapartida, sentir-se “em irmandade com o universo por meio da sujeira”. Daí, então, a atriz trata de termos pouco convencionais mobilizados para descrever a imundície – dedicando-se a um sensível esmiuçamento da linguagem, traço recorrente no trabalho de Arrigo Barnabé –, transformando tal investigação da semântica numa espécie de devaneio surrealista.

Tendo em vista o vasto arcabouço de signos abstratos no texto, me pareceu que o formato escolhido pela atriz para trazer à ribalta o texto de Barnabé nos fez perder, em muito, a poética do material apresentado. Não que um texto prenhe de abstrações demande, necessariamente, um projeto de encenação material, é claro; mas creio que grande parte da esotérica sublime de “Teto” se perdeu devido ao escasso emprego de pausas, de silêncios, de uma modulação outra do ritmo empregado pela atriz Ju Alonso – que, ainda assim, desempenhou um ótimo trabalho. Talvez, com o uso mais recorrente dos intervalos e parênteses orais – uma vez que, no teatro, silêncios e ausências também são dramaturgia –, “Teto” pudesse ter permanecido por um tempo um pouco maior no palco do Auditório do Teatro Cultura Artística: a leitura apresentada não chegou a durar nem dez minutos, para surpresa e espanto da plateia.

“sER.á.Linha_do” [Performix] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1] 

O que nos liga? O que nos dá liga? Existe algo que liga nosso eu do passado com o eu do agora? Como enxergar essas linhas? A performance “sER.á.Linha_do” não nos responde nada disso, levanta questões, reflexões. Durante cerca de quarenta minutos a idealizadora Tamara Faifman vai, como Ariadne, tecendo linhas, cola as linhas aos corpos das outras duas performers.

À primeira vista, o título quando dito – ser alinhado – me faz pensar no alinhar-se, o ser reto, normatizado, porém quando lê o título em sua escrita ele é curvilíneo, como as linhas coladas à pele ele também é quebradiço. Existe uma continuidade na leitura ocidental, mas ainda assim ela nos permite uma diversidade de formas, assim como de corpos.

O que poderia ser um simples exercício de contato e improvisação vira uma partitura com múltiplas camadas de leituras. Também foi interessante que durante a performance o clima foi se alterando na Praça Roosevelt, existiam momentos ensolarados e outros onde nuvens fechadas cobriam os céus, esses múltiplas tempos combinaram com as linhas cruzando espaços e tempos.

“V1ADO: ANIMAL DE PODER” [PerforMix] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

Dentro da programação “SatyriBicha” havia três opções apenas. Será que a programação falhou? Não é possível que só teve esses trabalhos de “viado” nas centenas de atrações? Bom… entre elas, havia “VIADO: ANIMAL DE PODER” grafado assim em letras maiúsculas, para que não passe desapercebido no guia de programação. A performance foi apresentada numa Praça Roosevelt cheia de opções e atraiu poucos e atentos olhares. O intérprete (Luiz Costa) de forma ansiosa vai construindo sua ambientação na frente de olhares curiosos, que tinham poucos códigos para identificar o que aconteceria ali.

A sinopse divulgada dizia: Ressignificar uma palavra envolve muito esforço, principalmente quando se é alvo do adjetivo. Esta performance é um convite a pensar as violências do pejorativo e as potências da contraposição que é apropriar-se de um arquétipo como uma armadura emocional. Aqui a fuga para o inesperado é bem-vinda, lugar subjetivo compartilhado da infância Queer do artista. 

Na cena, uma garrafa de cerveja, uma vela vermelha e uma fita cassete do filme da Disney “Bambi”. Não à toa, o artista coloca um adereço/coroa na cabeça remetendo aos chifres de um cervo (ou veado, no conhecimento popular) e fita isolantes nas pontas dos pés para que seus pés se assemelhem mais as patas/casco do que a pés humanos. Estamos diante de um “viadohumanohomemmeninoquedebambivirouumveado”. Nesse deslocamento de suas memórias, provavelmente dolorida e complexa, o público se depara com o pai do intérprete, que era caçador de “veados”. Ou seja… seria o pai do artista um homofóbico de plantão? Ou apenas um caçador que não quer guerra com ninguém?

Com um ferimento no coração, supostamente disparado pelo próprio pai, o veado/viado tece então uma trajetória de narrativas em busca de validação, citando a presença de outros como ele na história da humanidade. Essa busca por iguais é uma das questões latente para a comunidade homossexual, que só se vê fortalecida entre os seus. Assim como os bichos de quatro “pés”. Do meu lado uma garota chora, impactada pela suposição de que o pai havia matado ele. Questiono ela, tentando amenizar e dizendo: “talvez não matou, só feriu”. Não adiantou. O veado/viado se afastou de nós sem explicações e porquês, como que fugindo para algum lugar que não alcançamos. Deixando a garota inconsolável. Observava eu, olhando a garota, olhando o VIADO indo embora. Pois é, talvez alguma coisa tenha sido ressignificada nessa noite. 

“Adoniran – Companhia de Dança Ballet Stagium” [DançaMix] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

O espetáculo “Adoniran”, do Ballet Stagium, é uma homenagem vibrante e divertida ao grande compositor paulista. A companhia consegue capturar a alma da cidade de São Paulo e a poesia crua e cotidiana das canções de Adoniran. As coreografias são cênicas e retratam a vida dos personagens que habitam o universo musical do artista, desde os boêmios do Bixiga até os trabalhadores da metrópole.

      A trilha sonora, composta pelas próprias canções de Adoniran, certamente traz lembranças a todos os espectadores – não há como nunca ter ouvido uma de suas canções. Além disso, releituras de Elis Regina, entre outros nomes da  música brasileira, estão no repertório. A cenografia e o figurino contribuem para a imersão no universo de Adoniran, transportando o espectador para as ruas e vielas de São Paulo. Além de um ator que representa o próprio homenageado, fazendo intervenções no meio dos bailarinos e com seu chapéu de lado. As imagens visuais criadas pelos bailarinos dão formas impensáveis às palavras contidas nas músicas, com vôos e pousos certeiros dos dançarinos.

      Em resumo, “Adoniran” é um espetáculo imperdível para os amantes da dança e da música brasileira. Ballet Stagium demonstra, mais uma vez, sua maestria e tradição ao transformar o legado de Adoniran Barbosa em linguagens diversas. O espetáculo é uma celebração da vida, da música e da poesia, e nos convida a refletir sobre a cidade de São Paulo e sobre a obra atemporal de um dos maiores compositores brasileiros.

“Junta Besteirológica” [CircoMix] | por Douglas Ricci [@blogaus]    

Que alegria poder acompanhar um showzinho do Doutores da Alegria durante o Festival! Quando cheguei na tenda armada no meio da Praça Roosevelt para receber os espetáculos de picadeiro, parece que eu senti um relaxamento que eu não estava esperando, de repente foram chegando várias crianças pra assistir ao espetáculo e a alegria e algazarra delas aumentaram esse relaxamento e quando o cortejo dos Doutores da Alegria que vinham da praça adentraram a tenda e foram tomando conta do picadeiro a sensação era de que eu voltava a ser criança também, não tem como ficar imune a presença de um palhaço.

E o show começou com seus números de palhaçaria. Causos, malandragens, mágicas absurdas, envolvendo completamente a plateia entregue nas mãos dos palhaços. Quem passava pela praça e via o aglomerado de pessoas tomadas pelo que acontecia no picadeiro, não resistia e também se entregava à brincadeira, pois não é possível não se envolver com a alegria, inocência e despretensão de um palhaço. 

Voltamos todos a ser criança ali naquele momento, e ao deixar a tenda parecia que saímos algumas toneladas mais leves do que tínhamos quando entramos. 

“Ipê – Palavra Tupi” [Literatura e Contação de Histórias] | por Mariana Ferraz [@marianaferrazmf]

“Ipê, palavra tupi”, espetáculo realizado na Livraria Megafauna do recém inaugurado Teatro Cultura Artística, e que integra a programação de Literatura e Contação de Histórias da 25ª edição do Festival Satyrianas, é uma delicada celebração ao florescimento da beleza.

No encontro, os artistas Joelson Lima e Andreza Aguida apresentam ao público uma brevíssima – porém ancestral – narrativa cantada dos Ipês, com canções autorais e interpretações engajadas com a sutileza de todas as coisas, tratando desta história “que ensina e insiste” que “o que se fez, se refez”. Assim, reivindicando, num jogo cantado, a onipresença poética das flores, Joelson e Andreza tratam dos múltiplos contextos em que os Ipês – as árvores, mas sobretudo seu produto primaveril – adornam, compõem e dão sentido à existência humana, animal, transcendental: sobretudo porque, de acordo com os artistas de “Ipê, palavra tupi”, a flor nos acompanha em circunstâncias de alegrias, intenções, tristezas, encontros e despedidas, lamentos e celebrações.

Destaco a tradução de uma riquíssima pesquisa de linguagem empreendida pelos artistas, principalmente quanto à etimologia e às tantas variações possíveis para a designação do nome “Ipê”; bem como a gentilíssima interação com o público presente – ao entregar-lhe, em papel crepom, flores roxas, rosas, amarelas e brancas, em alusão ao ciclo de cores percorrido pelos Ipês no caminho de sua floração.

Finalmente, “Ipê, palavra tupi”, é um espetáculo refinadíssimo no jogo, cristalino na poesia, e merece ser visto por crianças de todas as idades, por infantes de todas as infâncias. É terno, cuidadoso, encantador. E brasileiríssimo, vale dizer – e esta talvez seja a mais contundente das qualidades que se pode atribuir a um trabalho artístico.


SEXTA-FEIRA – 15 DE NOVEMBRO

Café Literário na Megafauna | por Beatriz Porto [@beatrizpfg] 

A crítica da crítica

Márcio Tito, do portal de críticas Deus Ateu, reúne Mariana Ferraz e Alexandre Gnipper, seus colegas críticos no projeto, além de Paulo Bio Toledo, crítico de teatro da Folha de São Paulo, e Natália Beukers, criadora do guia Infoteatro, para uma conversa sobre os rumos da crítica teatral nos dias de hoje.

Para este comentário aqui, penso que mais interessante do que tentar reproduzir as falas da mesa será refletir sobre elas, buscando menos resumir a atividade e mais deixar o debate aceso. Digo isso pensando no caráter de formação que conversas como essa proporcionam. Especialmente em um festival como a Satyrianas, que recebe tantas obras em processo e que terão o primeiro olhar crítico por esses sprints, acho interessante perguntarmos: o que se espera da crítica? Qual seu papel na cena teatral?

A conversa no geral girou bastante em torno do impasse crítico carrasco versus crítico conciliador. O crítico carrasco estaria naquelas figuronas do século XX que tinham o poder de derrubar a bilheteria de uma temporada ao fazer um comentário negativo sobre a peça no jornal. A postura conciliadora do crítico foi observada como um caminho recorrente na crítica atual que visa a tornar sua escrita mais democrática e mais preocupada com um olhar respeitoso sobre a obra e o artista em cena. 

Entretanto, se pensarmos dialeticamente, como propôs Paulo Bio em determinado momento, a postura conciliadora não gera por si só a superação do problema do crítico carrasco. E ter respeito por um trabalho não é sinônimo, necessariamente, de elogio, mas talvez seja de oferecer o olhar atento. Se a crítica for elogiosa baseada inteiramente em percepções subjetivistas como “gostei” ou “a peça é deslumbrante”, talvez ela revele mais sobre o gosto do crítico do que sobre a obra apresentada e pode carregar, ainda que veladamente, resquícios de uma retórica autoritária. 

Nesse sentido, os debatedores conversaram bastante sobre como os comentários que criticam negativamente aspectos de uma peça, mesmo que de forma respeitosa e sem intenções de achincalhe, muitas vezes ainda são levados pelos artistas como um ataque pessoal. Márcio Tito contou de momentos que passou nos últimos anos de escrita para o site em que viu somente comentários elogiosos sendo levados em consideração, e outros comentários sendo propositalmente escondidos. Me pergunto, a partir dessas experiências, o quanto não criamos (aqui falando como fazedora de teatro) um espaço para a crítica que é empobrecido: ela só me serve como divulgação do meu trabalho e, para tanto, só me serve o que for elogioso.

Por isso, volto um pouco à ideia de formação que comentei lá em cima. Acho importante entendermos que a crítica é, assim como o próprio fazer teatral, um exercício em processo: ela também está posta no mundo para que se concorde ou discorde dela, para que se aprenda com ela, para que se dialogue com ela, numa tarefa contínua de construção de referencial e de leitura da linguagem teatral. Isso tanto para o crítico, como para o artista e especialmente para o público (que julgo que muitas vezes esquecemos de colocar na equação da recepção teatral quando falamos em debates entre especialistas). 

A crítica como espaço privilegiado do pensamento pode ser um bonito meio de mediação de uma obra, inclusive para o público leigo. Por que será que tal cena me causou essa sensação? O que faz com o que o discurso da peça chegue dessa forma? O que me causa incômodo na peça? Quando falamos em democratização do acesso ao teatro, sabemos que em São Paulo, por exemplo, isso está historicamente atrelado à formação de público. Entender do vocabulário teatral, saber ler uma obra, é também abrir caminhos para o interesse em assistir teatro. 

Por isso, contaminada pelo otimismo proposto por Mariana Ferraz ao longo da mesa, vi nessa conversa uma iniciativa rara e importante: vamos debater como debater teatro! Vamos levantar as contradições e perceber as diferenças nos caminhos, nas leituras de mundo. Elas mudam também o nosso olhar sobre o teatro (e vice-versa!).

Aqui, nesses sprints, não temos necessidade nenhuma de dar estrelas aos eventos, o que é ótimo: não estamos com interesse de mercado, mas de oferecer um olhar externo a um trabalho em construção. Mesmo assim, por puro exercício de aprendizagem, vou me meter a copiar o modelo de Paulo Bio, que diz dar 5 estrelas não necessariamente por gostar ou achar que uma peça tem futuro mercadológico, mas por ver nela um debate que precisa de palco. 5 estrelas!

“Por Zenturo” [Teatro Adulto] | por Fernanda Abegg [@fernandabegg]

Por Zenturo: Que Tempo É Este de Estar? é uma provocação que subverte a percepção do tempo e do espaço, levando o público a questionar sua própria existência no fluxo frenético do cotidiano. A performance, inspirada na obra Marcha para Zenturo, de Grace Passô, e na proposta de Eleonora Fabião sobre o corpo em experiência, propõe ações desconcertantes, onde o tempo não apenas se estica, mas se contorce, quase como uma brincadeira com a linearidade da vida.

O contraste entre movimentos lentos e rápidos, entre duplas, trios, ações individuais e a interação com a plateia, gera uma dinâmica que mantém o público atento e reflexivo. A repetição de gestos e ações em um espaço público como a Praça Roosevelt amplifica a sensação de que o tempo não é linear e que estamos, na verdade, fora do fluxo cotidiano. A performatividade do grupo de artistas, gera uma sensação de curiosidade e estranhamento, fazendo com que o espectador se questione: que tempo é este de estar?

“Ponto a Ponto” [Teatro Adulto/SatyriBlack] | por Luê Stracia [@hastaluego.br]

O espetáculo é uma adaptação do texto ” Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã”, de Johnny Salaberg, grande referência para a história do teatro brasileiro. O genocídio da juventude negra (e infâncias) é o principal tema da peça, onde realidade e espiritualidade se conectam em uma narrativa bem amarrada e emocionante. Uma simples história de duas crianças gêmeas indo comprar pão para a mãe na periferia se transforma em um pesadelo quando os filhos não voltam, e um filme começa a passar pela cabeça da mãe: Por que demoram tanto? Será que aconteceu alguma coisa? Não devia ter deixado eles irem sozinhos – indagações comuns para mães negras no Brasil. 

Então, move-se para o pior cenário possível: as crianças tentam fugir da polícia, que atira sem piedade e muitas vezes nos irmãos. O rap entre as cenas, a cumplicidade dos dois, os buraquinhos das balas nas camisetas e os diálogos sobre a morte são importantes para o resto da trama. Desde o início, se nota que os atores estão com roupas típicas de comunidades de terreiro: batas brancas, saias e lenços na cabeça. O debate passa então, após os tiros, a encantar para o Itan dos Ibejis – gêmeos que desafiaram a morte na cultura iorubá e os meninos se tornam pura ancestralidade em forma de erês – transformando a morte em uma brincadeira espiritual, continuação da vida e lugar de luta para a juventude que é brutalmente assassinada pelo racismo do sistema. 

Por fim, o cenário hipotético desaparece e as crianças voltam sãs e salvas para sua mãe. Importante destacar o papel da mãe preta no decorrer do espetáculo, que cuida e protege seus filhos mesmo de longe. Um final possível, um futuro possível (voltar para casa ilesos). O tema da dignidade em vida e morte também aparece, além da importância do brincar e das entidades que brincam para as culturas de terreiro. 

“Avante Sonhantes” [Teatro Adulto] | por Fernanda Abegg [@fernandabegg]

A recepção do espetáculo provoca uma reflexão logo na fila de entrada, quando o público é convidado a responder à pergunta: “Hoje, na energia que você está, acredita que é possível realizar seus sonhos?” A contagem dos “sim” e “não” dá o tom do que está por vir, criando uma conexão imediata entre a plateia e a temática central do espetáculo.

Na caixa preta, um círculo de cadeiras rodeia corpos adormecidos espalhados pelo chão, com uma pilha de papéis amassados no centro. Gradualmente, o elenco começa a tentar acordar, levantar e iniciar o dia — uma cena simples, mas carregada de simbolismo. Esse recurso é explorado de forma eficaz, criando uma transição entre o sono e o despertar, tanto físico quanto emocional. Em determinado momento, uma das atrizes interrompe a ação e começa a contar sobre um sonho lúcido envolvendo um cabo de guerra. A partir daí, o espetáculo se desvia para uma pesquisa sensível, marcada pela diversidade de corpos em cena e pela forma como o jogo de palavras se desenvolve, funcionando simultaneamente nos níveis sonoro e visual. É uma experiência deslumbrante.

O trabalho me impactou de maneira inesperada quando os atores começaram a abrir os papéis e ler sonhos para alguém aleatório da plateia. O relato que chegou até mim falava sobre o “sonho químico” — uma pessoa que não sonha devido ao uso de medicação para dormir. Curiosamente, essa é a realidade da voz que escreve esta crítica. Uma daquelas coincidências intrigantes do teatro. Ou as questões do onírico são apenas mais comuns e recorrentes do que eu imaginava?

“Nós Noia” [Teatro Adulto] | por Fernanda Abegg [@fernandabegg]

“Nós Noia” cria uma atmosfera imersiva e “real de uma festa”, onde o público é convidado a participar, com bebida e outras “cositas” à disposição. A ambientação, embora descontraída, é intencionalmente desconfortável e provocadora. Nesse terreno de delírios e tensões, os atores exploram os diversos comportamentos humanos que surgem quando nos entorpecemos.

Nós, em estado de noia, representamos o espectro humano entorpecido: aquele que fala sem parar, quem se fecha em si mesmo, quem se torna agressivo e quem se perde nas próprias paranoias. O projeto não apenas encena essas manifestações, mas as incorpora como parte de uma experiência coletiva, que atinge a plateia de forma direta e intensa. As reações do público, entre o riso e o desconforto, tornam-se parte da performance, reforçando o efeito de imersão e criando uma dinâmica entre ator e espectador que é simultaneamente caótica e reveladora.

“Primaverar” [DramaMix] | por Fernanda Abegg [@fernandabegg]

Primaverar é um mergulho íntimo em um solo contaminado pelas memórias e medos de uma paciente à deriva. Ao chegar para ser internada em meio ao caos de calçados e um carrinho de bebê com um sapatinho dentro, ela traça passos inseguros, oscilando entre o medo de lembrar e o de esquecer suas próprias memórias. Na cena, a personagem contracena com enfermeiras crueis e debochadas, que intensificam o clima de insegurança e vulnerabilidade.

A encenação leva o espectador por uma jornada sensível e introspectiva, retratando a vivência em um manicômio e o labirinto mental enfrentado por quem sofre com a fragilidade da saúde psíquica. A peça também utiliza projeções de imagens e elementos simbólicos que remetem à infância, como o carrinho, os sapatos e uma boneca. Essas referências são visuais e não estão aprofundadas no texto, deixando questionamentos ao mesmo tempo dolorosos e ternos.

“Energúmenos de verde e amarelo” [DramaMix] | por Mariana Ferraz [marianaferrazmf]

“Energúmenos de verde e amarelo”, solo de Hugo Possolo, irrompe na programação da 25ª edição do Festival Satyrianas como um espetáculo coerente, político e extremamente necessário. Dentre tantas razões, porque o ator e palhaço se dispõe a apresentar uma sorte de escancaramento arquetípico de figuras que possuem, em comum, um elemento um tanto quanto particular: são simpatizantes, partidárias, devotas, “nem contra, nem a favor – muito pelo contrário” do pluralíssimo e nefasto arcabouço de pautas e argumentos reivindicados pelos núcleos de extrema direita ascendentes no Brasil.

Por meio do encadeamento de cenas curtas, nas quais traz à ribalta um sem-fim de figuras esdrúxulas que encarnam, em maior ou maior medida, a grande estupidez a que se refere Hugo Possolo, “Energúmenos de verde e amarelo” incita a plateia ao riso delirante – bem como à mudez da comoção – ao cruzar uma dramaturgia prenhe de anedotas, descrições e comentários que constituem uma imensa barafunda de bizarrices. O sofisticamento narrativo, daí então, incide principalmente no modo com que o palhaço evidencia o contexto a que se refere: ao tornar tais figuras protagonistas da chacota, Hugo Possolo alcança, na corda bamba da zombaria, comunicar à plateia que os “dignos de chacota” somos nós, o público que ali está – apelando, com sutileza e argumentação, à necessidade de que também nós possamos nos responsabilizar, imediatamente e para ontem, pelo nascimento soturno do monstro.

Em “Energúmenos de verde e amarelo”, Hugo Possolo é Roberto, um clássico “tiozão do Zap” que critica a imprensa, que acredita que a terra é plana e redonda – “como uma pizza”, em brilhante alusão ao jargão político/futebolístico tão recorrente no linguajar noticiero do Brasil  –, que o Golpe de 1964 teria sido uma Revolução, mas cuja preocupação verdadeira e contumaz diz respeito ao fato de sua esposa, Edilene, ter lhe posto cornos com um tal de Wilson. Mas Possolo também é um pastor charlatão e midiático, que acredita no agro – que é tech, que é pop, que é tudo! – e que prega a religião do dinheiro; um homem que descreve minuciosamente as violências cometidas quanto à sua companheira, até o definitivo assassinato da mesma; um professor de cinema que apresenta, metaforicamente, uma barafunda de pensamentos que, no final das contas, mais confundem do que elucidam; um pai conservador e preconceituoso que não admite que o filho possa ter ideias e ser feliz; bem como um standuper cuja vida é tão desinteressante, mas tão desinteressante, que seu relato culmina em uma longa e divertidíssima cena sobre o achamanto de um cu. Lembremo-nos, afinal, de que a fixação anal é mesmo característica recorrente dos grupos que se encontram sob o exame de Possolo, que num louvável exercício de jogo com a linguagem, logra trazer o tema à baila com a devida comicidade e acidez.

Possolo é, também, Deus: um Deus beligerante, que anda armado, que perde a paciência e que gosta do vil metal – a nítida e lamentável fusão da Teologia do Domínio com a Teologia da Prosperidade, tão reivindicada pelo neopentecostalismo que, dentre outros rincões, invadira sem precedentes também as instâncias do legislativo brasileiro. É o tal Deus do Velho Testamento, da Carnificina, que não vê problema algum em “soltar uns pipocos” nos que atravessam seus caminhos: é um Deus que exalta os homens, objetifica as mulheres – remetendo-se, inclusive, à figura de Eva como “uma gostosa” –, e que não está tão preocupado assim com a benevolência e o amparo aos seus filhos. Em suma, é o Deus dos Energúmenos, criador do glorioso trio de fármacos Prozac-Ritalina-Rivotril, e que prefere ver seu rebanho entorpecido do que pensante.

“Energúmenos de Verde e Amarelo” é uma grande convocação ao esmiuçamento deste imenso colapso político, intelectual, cultural e, por que não dizê-lo, também estético, que se verifica no cenário brasileiro há pelo menos uma década – se remontamos às Jornadas de Junho de 2013, como muitos intérpretes o fazem, como um dos episódios históricos disparadores da balbúrdia. Com destreza e inteligência – ferramental esplêndido tão luminoso no exercício da palhaçaria –, Hugo Possolo entrega ao público um espetáculo completo, desses que não se logra qualificar nem mesmo com a mais rebuscada e cafona frase do portal O Pensador. Pois é preciso olharmos para os monstros antes que eles resolvam olhar para nós: “um homem parado na calçada só significa algo quando se olha de perto”.

“Rádio Canibal” [DramaMix] | por Beatriz Porto [@beatrizpfg] 

O texto de Luís Holiver fala sobre um casal de artistas, Tom e Américo, que vivem juntos a angústia idealizada de se tornar artista. O casal está rodeado de vícios, desde heroína até o fascínio um pelo outro, que parecem compor um cenário psíquico de duas pessoas que tentam sobreviver ao próprio sonho de um dia fazer sucesso.

A história ganha ares de thriller psicológico quando Tom, após Américo ser expulso de casa, propõe que eles morem juntos na casa de sua família, em uma pequena cidade do interior. Nessa época, Tom já era famoso na rádio e sua voz era a promessa de sua cidade. Sua família parece ser importante e a cidade em si sugere um tempo/espaço ficcional curioso: lá tem o Coronel, personagem que nunca aparece, mas que é mencionado com autoridade. Aqui, tudo parece estranho e o cerco se fecha sobre o casal. Apesar de termos as descrições dos acontecimentos da cidade contadas pela narradora/escritora, os únicos personagens em cena são sempre Tom e Américo, num ciclo fechado que vai parecendo cada vez mais doentio. 

Numa jogada ensaística interessante do texto, Tom perde a voz, não podendo mais cantar. Aqui o thriller se intensifica: Américo, se aproveitando da condição do namorado, começa a ocupar seu espaço na cena musical local. Sua atitude é o tempo todo construída num paralelo imagético com o canibalismo, o que contribui para a sensação de terror que o texto causa.

Como em “Roda Viva”, de Chico Buarque, a peça aponta para a desumanização do artista que se vê desprovido de si ao se perceber mercadoria. Isso está na forte fala de Tom “minha voz pode ser do povo, mas minhas veias ainda são minhas”. Me parece, contudo, que ao vermos o canibalismo como um fruto violento de uma relação que acontece sempre dentro do quarto, nunca em conflito direto com o resto do mundo, a peça deixa de tocar na máquina da indústria cultural e seus agentes. 

Digo isso porque o texto aponta diversas camadas interessantes, mas que ficam como mural paisagístico: a narradora sugere uma questão de classe ao descrever a família de Tom como anfitriã de grandes festas de artistas e intelectuais e a cidade parece viver numa política de coronelismo, por exemplo. Acontece que esses entraves estão sempre no campo descritivo e aparecem na voz externa da narradora/escritora e não na lida do casal. Isso produz um drama em que as personagens estão ilhadas e o canibalismo é mais um traço doentio do que uma resposta antropofágica a um acontecimento de ordem social. 

“Rádio Canibal” [DramaMix] | por Douglas Ricci [@blogaus]

Essa é uma interessante dramaturgia que parece nos levar para um tempo analógico em que as rádios e os seus programas eram quem comandava o mundo do entretenimento, criando estrelas da noite para o dia e relegando as que se tornavam ultrapassadas ao ostracismo. Junto, há uma discussão sobre sexualidade e a aceitação de aspectos divergentes desta na sociedade de um tempo antes de esse assunto ser a ordem do dia.

A história tem um ritmo muito envolvente, recortando momentos da vida dos dois personagens principais e sobrepondo-as à narrativa de uma terceira personagem que parece ser uma jornalista que investiga essa história estonteante que aconteceu tempos atrás. 

A leitura apresentada no festival já se arrisca em  aspectos de encenação, apresentando alguns elementos que acho bastante interessantes como o recorte de luz em que se insere a intimidade do casal protagonista, assim como elementos de cenografia que nos remetem a tempos passados como uma máquina de escrever e uma cadeira típica do século vinte. É o tipo de leitura dramática que me dá vontade de ver a montagem da peça. Que aconteça em breve!

“A penumbra do quarto solitário” [DramaMix] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

“A Penumbra do quarto solitário”, de Abelardo Araújo, ganhou uma leitura dramatizada dentro da programação do Dramamix na Satyrianas. Com duração de 25 minutos, Aroldo Zanchett e Marina Bragion dão voz aos personagens desse trabalho, ao som da melancolia do compositor estoniano Arvo Part (Spiegel in Spiegel), é bom que se diga.

Ela, uma espécie de narradora. Ele, o protagonista isolado num quarto. Quase como criador e criatura já que a personagem narrada por Marina também dá voz ao dramaturgo,  num metateatro onde não se sabe ao certo se o intuito é confundir, provocar, ou mesmo debochar da dor do protagonista. Essa opção faz com que o dramaturgo seja um crítico do seu próprio trabalho. O que é uma boa opção, que talvez ganhasse realces mais eficientes numa possível encenação.

O drama se estabelece pelo fato do protagonista existir sozinho num quarto, numa grande metrópole. O motivo que o torna solitário e carente não é exposto, o que deixa a narrativa um pouco solta e a leitura beira a lamentação. Qual o motivo do personagem? De onde vem, para onde vai? Perguntas que não são respondidas e nem se pretende, já que para Abelardo talvez o simples fato do personagem respirar sem motivos aparente, o dignifique e o torne um reflexo de outros solitários de plantão.

Dirigido pelos próprios atores – talvez na intenção de “respeitar” a atmosfera estabelecida pelo autor – a leitura não ofereceu nenhum risco à sua concepção. Na referida leitura o autor estava presente e relatou se sentir representado pelo trabalho. Diante disso, como contestar o que foi feito?

“Paixão Crônica” [DramaMix] | por Douglas Ricci [@blogaus] 

Uma mulher às voltas com sua necessidade de afeto e acolhimento é apresentada no texto deste monólogo que aborda temas como o amor, a maternidade, o afeto e os limites por trás desses conceitos.

A gente vive em uma sociedade machista, patriarcal e que relega as mulheres a serem basicamente servidoras de um homem, prometendo a elas em contrapartida uma ideia de felicidade pautada na construção de um lar, de uma família, mas que na prática resulta muito mais em um tipo de prisão servil.

A personagem deste texto se vê confrontando esse mundo e saindo deste embate aos frangalhos, e sua narrativa nos leva a refletir sobre o quão duro é o cumprimento das expectativas dessa sociedade, especialmente para as mulheres.

“Cemitério das Mulheres Vivas” [Teatro Adulto] | por Fernanda Araújo [@nanndaaraujo]

Essa foi a primeira peça que vi no dia 15/11. Não pesquisei nada sobre ela antes de assistir e, depois, precisei maturar o que experienciei para escrever este texto. Acredito que são extremamente pertinentes obras que expõem as diversas vivências de mulheres em suas relações conjugais, especialmente nas relações heterossexuais disfuncionais e abusivas. O machismo ainda é uma das maiores problemáticas de nossa era e, comprovadamente, uma das ideologias mais letais. No Brasil, os casos de feminicídio e estupro aumentaram em 2024.

Assistir a um grupo de mulheres interpretando personagens encarceradas pela legítima defesa de seus algozes é algo que mexe profundamente com o ser feminino. As narrativas são íntimas e intensas, contadas com uma certa poesia e entrelaçadas como as tramas das cordas presentes no fundo do cenário. A cenografia das cordas, aliás, funciona como um elemento metafórico: ao mesmo tempo que nos remete ao aprisionamento dessas mulheres, sugere a conexão de suas histórias, que compartilham dores, medos e resistências.

Cemitério das Mulheres Vivas é uma peça que não apenas denuncia a violência contra mulheres, mas também revela as complexidades emocionais e psicológicas enfrentadas por aquelas que sobrevivem a esse ciclo devastador. Refleti também sobre a escolha do título, que, para mim, é impactante e simbólico: ele transcende sua função de nome e se transforma em uma reflexão profunda sobre a experiência de morrer em vida. A cada agressão, as personagens são mutiladas, sobrevivendo apenas fisicamente, mas sufocadas pela violência que as consome.

A dramaturgia é inspirada em três reportagens em que Nelson Rodrigues visita o presídio feminino de Bangu em 1951, e se faz densa e multifacetada, trazendo uma narrativa que intercala momentos de brutalidade com lampejos de resistência. As falas das personagens ressoam como gritos abafados de socorro e, ao mesmo tempo, como declarações de uma força descomunal. O texto, aliado à direção precisa, constrói uma atmosfera opressiva e visceral, que convida o espectador a confrontar realidades muitas vezes ignoradas.

“No Banheiro Sujo de um Bar Qualquer” [Teatro Adulto] | por Beatriz Porto [@beatrizpfg]

A peça nos coloca diante de um grupo de pessoas marginalizadas que vivem uma vida paralela na madrugada pelos bares do centro de São Paulo. Elas se xingam e se ameaçam o tempo inteiro, parecem ter pouco a perder. A estética do banheiro sujo e de um bar qualquer está presente ao longo de toda a peça. É possível ver o chão de azulejo branco que já está oleoso às 4h da manhã, a luz verde de fim de noite e a luz branca com mal contato.

“No banheiro sujo de um bar qualquer” é uma fábula pop e urbana sobre o desaparecimento do malandro Johnny Pancadinha e que coloca as personagens que de dia levam sua vida como trabalhadoras precarizadas (faxineiras, prostitutas, faz-tudo) se debatendo à noite sob a violência da própria forma de existência.

O texto usa de um humor ácido que busca evidenciar a crueza das relações entre aqueles que não têm escolha. Textos assim são parte de um painel importante da dramaturgia nacional que fazem o esforço de ver, nas nossas tragédias urbanas de um país da periferia do capitalismo, indivíduos dignos de desejos, sofrimentos e humanidade. Há de se pensar, contudo, quanto que o isolamento de tempo-espaço único não produz certa idealização das figuras, mesmo que na violência e na barbárie. Os subalternos que se xingam, se ameaçam e se violentam aparecem um pouco como figuras fadadas a esse tipo de comportamento, que parece inato e inerente àquela condição. As personagens da peça parecem não existir fora daquele contexto, o que torna mais difuso o exercício de aprendizagem sobre as condições materiais do mundo que as colocam ali. 

“Cabaré Beijaria” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [blogaus]

Cabaret Beijaria nos apresenta uma divertida fauna de figuras em esquetes curtas que começam por abordar o tema beijo nas primeiras cenas e que depois descamba por assuntos relacionados à morte, passando por um puteiro. Sim, é uma mistura absurda e desconexa de temas no melhor estilo programa de humor à toa na televisão.

Me debulhei em gargalhadas em diversos momentos, pois  boa parte do elenco tem a incrível capacidade de ter a plateia em suas mãos e a levar para onde quiser. No caso, para absurdas situações como a master aula de beijo com a mestra no assunto Cris Beijoqueira, que definitivamente rouba a cena sempre que aparece com seu carisma, sedução e língua louca, ou o monastério zen em que duas amigas vão para relaxar e acabam se metendo em confusões.

Como disse no início, a peça passa por assuntos desconexos, mas será que importa ter uma unidade temática para um show de humor? O que importa não é a qualidade das gargalhadas que os artistas conseguem tirar da platéia? Sim, eu acho que é, e a peça consegue ser bem sucedida neste quesito em diversos momentos. 

A peça tem um desleixo com os elementos da cena que ao invés de atrapalhar, reforçam o tom ‘bagaceiro’ da proposta lhe dando um brilho especial. Inclusive acho que deveriam pensar em um show todinho voltado para as aventuras de Cris Beijoqueira.

“Alguém Tinha que Ceder” [Teatro Adulto] | por Paulo Maeda [@paulomaeda1]

Não sei se já estava na dramaturgia… mas fico imaginando o André falando: “vamo começa com Alcione? – Pode Esperar – tem tudo a vê”. Pode ser minha imaginação criando coisas, sei lá… mas, acho que preciso voltar alguns capítulos.

É a primeira vez que faço parte dos Sprints Críticos nas Satyrianas, e no meu primeiro dia, em minha primeira peça recebo de presente assistir à peça “Alguém Tinha que Ceder”. Ano passado estava em cartaz como ator na mesma época que a Cia da Fachada estava no Satyros. Não consegui assistir… poderia ter conversado com o André naquele momento o que pretendo escrever a partir de agora. Para quem não sabe, André Castelani é o diretor do espetáculo, querido amigo e professor de tantas e tantos, que fez a passagem em agosto passado.

A peça se passa em uma São Paulo caótica, anos 90, era Collor, era FHC. O cenário simples, os discos de vinil me fizeram recuar para esse momento histórico. É também um momento de alta especulação imobiliária, a cidade começa a se verticalizar, e em um prédio prestes a ser demolido vive um casal, as personagens da peça, que vão discutir, se desmascarar no tempo de um dia – o prazo para o desabamento do prédio. Mas não se engane, não é uma peça de época, ela está buscando o diálogo com o que estamos vivendo neste momento (ou, o que sempre vivemos…).

A peça se propõe uma tragicomédia, mas ela passeia por diversos gêneros. A personagem Otávio, que a princípio parece um sonhador, egóico sim, mas um sonhador – algo que prezo muito ultimamente – porém o sonho vai dando espaço para o patético, o patético para o desprezível, o desprezível para a violência… e como chegamos até aqui? Essa figura ligada à família, minha casa, minha posse. Como a humanidade no filme “Não olhe para Cima”, ele não enxerga o meteoro. Já Laura é a figura trágica, a caixa de supermercados que sustenta a casa, os desejos do outro e soterra seus próprios sonhos. Quando comentei que a peça perpassa outros gêneros é porque ele flerta com o melodramático (o nome das personagens já denuncia a brincadeira), vez ou outra a patetice do Otávio é tanta que perpassa a farsa, e por fim não posso deixar de lembrar de obras da absurdidade, Cortázar, Ionesco nessa situação caótica, porém tão real. Sei que conversaria muito mais com você André… mas te agradeço pelo espetáculo e a toda as pessoas envolvidas, óbvio! Se me permite amigo, a Bruna Gabrille e o Rodrigo Fortunato são super potentes, sugeriria pensarem com carinho nas pontes entre estados emocionais de suas personagens, podem descobrir mais brilhos pra relação. Finalizo, pois me estendi, com outras palavras do André, que já usei anteriormente mas sempre vale lembrar e tenho certeza que a Cia. Da Fachada segue em luta, em cena: “estar com você na trincheira é um exercício de utopia”

“Carcaça de Peixe” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [blogaus]

Acho bonito ver um artista movendo mundos para estar em cena e apresentar ao público aquilo que traz dentro de si e que ele tem consciência de que é valioso, pois é verdadeiro. Tenho visto diversos trabalhos, não só no Festival, mas ao longo do ano que partem dessa forma de operar: vivências pessoais do artista que são transformadas em dramaturgia, e o espetáculo Carcaça de Peixe se filia a este tipo de trabalho.

O ator ao se apresentar diz que é um anjo e que tem a missão de proteger alguns seres humanos, e interessantes lampejos de narrativas começam a aparecer, como a de uma protegida dele que fez uma amarração amorosa. No entanto, esse plot parece ser abandonado sem maiores explicações para que a história do ator venha para a superfície, quando o tal anjo diz que um dia também foi humano e viveu as falências humanas como todos.

Para auxiliar a narrativa, ele lança mão de objetos de cena que utiliza de forma poética criando imagens que nos transportam ao universo que ele propõe: sua infância em uma ilha no meio do Atlântico no estado do Paraná. Destaco aqui o momento em que ele recria o som das águas do mar de ressaca com fotografias impressas em preto e branco em folhas de sulfite e um tecido.

“Fantasmas em Vila Maria” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci [@blogaus]   

Duas crianças resolvem ir até o cemitério da cidade em uma noite específica para fazer uma magia que deve libertar um certo lobisomem que sobrevive em lendas narrativas do pequeno vilarejo. Ao fazer a tal magia, acabam libertando um batalhão de zumbis que passam a persegui-los, capturando-os  e os levando para um tribunal de fantasmas. Diversas lendas do passado desse vilarejo então passam a ser apresentadas na cena.

O espetáculo, que acredito ser infanto-juvenil, tem um tipo de narrativa dramatúrgica que envereda para uma espécie de batalha entre o bem e o mal, sendo o bem as duas crianças que são cristãs e entram em uma igreja e recebem ajuda de uma freira, um santo e uma nossa senhora, e o mal sendo a legião de mortos vivos, que também são lendas de terror dessa cidade. 

Este tipo de dramaturgia, que parece querer forçar o público a tomar partido do lado do bem, me soa um tanto quanto preguiçosa, sem de fato debater um tema problematizando-o, transformando assim todo o esforço empreendido na montagem em nada, uma vez que a peça não tem um porquê temático claro. Mas essa é só a minha opinião. 

“Sujas” [Teatro Adulto] | por Fernanda Araújo [@nanndaaraujo]

Não costumo pesquisar previamente sobre as peças que vou assistir, e foi assim também com Sujas. Talvez, por ser mulher, ao ler seu título, eu tenha imaginado do que poderia se tratar, mas, ao assisti-la, foi algo muito maior do que eu poderia conceber.

Uma experiência enriquecedora e necessária. A peça começa com festa, música ao vivo, churrasco, cerveja e samba no pé. Uma alegria e leveza que, brutalmente, se transformam em desespero e dor.

Sujas é uma peça reveladora, que explora, de maneira performática, as dores e culpas de ser mulher. O abuso e a violência aos quais todas nós, mulheres, somos expostas e, muitas vezes, vítimas. A montagem das cenas, com suas viradas, e, principalmente, o momento de interação com o público, são impactantes e muito bem encenados. O uso da interação cria uma sensação de envolvimento profundo, fazendo com que o público não apenas observe, mas se sinta parte daquela trama, compartilhando, de certa forma, a carga emocional das personagens.

O objetivo da catarse é explicitamente atingido. Os espectadores se comovem, e choros discretos podem ser ouvidos. Não há como não se envolver com as histórias reveladas e com a forma como são entregues a nós em cena.

Destaco as três atrizes, que estavam muito bem preparadas, entregues, com uma encenação sensível e visceral. O tema é abordado de forma respeitosa, mas completamente expositiva. Você visualiza, de forma teatral, clara e intensa, as emoções vivenciadas por mulheres que passam por essas experiências, dando uma voz poderosa às suas histórias.

A sonoplastia é algo que muito me encanta, e o fato de ser feita ao vivo enriquece ainda mais a experiência. Ela tem um papel crucial na construção da atmosfera e na amplificação das emoções transmitidas pelas personagens. O uso do som é cuidadosamente pensado para intensificar a transição entre os momentos. 

“Confissões à meia luz ou A verdade não é aquilo que se conta” [Teatro Adulto] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

Baseado no conto “Os Assassinatos na rua Morgue” do escritório americano Edgar Allan Poe, mãe e filha são assassinadas em sua casa, e não há sinais de arrombamento, isso faz com que os vizinhos apareçam na história opinando sobre o que poderia ter acontecido. Com direção de Gustavo Ferreira, sob supervisão de Rodolfo García Vázquez, o trabalho é resultado de um dos cursos oferecidos pelo grupo Os Satyros, o que acaba oferecendo desafios e ganhos.

Como é de praxe em qualquer obra que Rodolfo esteja envolvido, a condução das cenas coletivas e a encenação dessa “massa” e como ela se posiciona e se forma em cena, funciona e preenche o espaço. Sob a direção de Gustavo os artistas fluem com naturalidade no espaço que se torna pequeno para um elenco tão grande e a disposição atípica da plateia. Nada explica a sensação do elenco parecer espremido na composição espacial. Em tons preto e branco, o que aumenta o clima noir, os atores se dividem em muitos papéis, num esquema de jogral que enfraquece a peça quando se pensa em trabalho de composição de ator, algo pouco explorado pelo grupo Os Satyros e que consequentemente – e provavelmente – não é trabalhado pelo condutores nas oficinas. 

Essa necessidade de ofertar espaço para todos, mesmo que nem todos estejam aptos a, é típico de trabalhos oriundos de cursos e oficinas. E se a referida montagem não deixa a desejar, também não oferece nenhum grande momento, no que tange o trabalho de interpretação do elenco. A surpresa positiva para “Confissões à meia luz…” é a forma como Gustavo trabalhou o tom sensual na montagem com o elenco masculino. A referência aos marinheiros do escritor francês Jean Genet em “Querelle”, obra escrita nos anos 40, foi imediata para este que vos escreve. Que a temporada traga ao referido elenco a possibilidade de descobrirem outros mistérios em cena. 

“A Lógica da Escuridão” [Teatro Adulto] | por Fernanda Araújo [@nanndaaraujo]

Quero iniciar esta crítica destacando minha satisfação com o cenário, bem como as propostas visuais e sonoras. Para mim, esses elementos são responsáveis por transformar a experiência e torná-la singular.

A peça é uma apresentação diegética, nem sempre racional, apesar de seu título. Como indica a sinopse, ela busca ressignificar a obra de Edgar Allan Poe por meio do grotesco. Foi minha primeira vivência com esse tipo de narrativa, e, sem dúvida, representa uma maneira distinta de vivenciar o teatro. 

Os recursos cênicos, sonoros e de iluminação são essenciais para construir a ambientação da trama, revelando não apenas o tom, mas também as sutilezas e detalhes de cada cena, elementos que se tornam fundamentais para a imersão e compreensão do enredo.

A cenografia, as projeções e os figurinos se destacam, pois não são apenas adereços, mas partes integrantes que comunicam e reforçam a essência da obra. Além disso, os breves diálogos entre os personagens desempenham um papel crucial: não apenas impulsionam a narrativa, mas também ressaltam informações essenciais que a peça busca evidenciar, criando uma tensão crescente e preparando o público para o clímax.

Esses recursos tornam a peça uma vivência sensorial que transcende a compreensão lógica e racional, convidando o espectador a experimentar as emoções de maneira visceral, como se estivesse dentro da própria tragédia descrita.

“Balada de uns Palhaços” [Teatro Adulto] | por Fernanda Araújo [@nanndaaraujo]

O peso de ser quem se é, a busca incessante pelo autoconhecimento, a melancolia que querer ser diferente do que se é. Um diálogo a três, interpretado por um único corpo em cena, explora uma pergunta: o palhaço tem alma?

Qual é o peso de ter como obrigação provocar o riso no outro, carregar a felicidade de alguém que não se é? E os desejos internos? O que se quer apenas para si? Quem nasce para fazer rir pode, também, chorar? Todas essas questões surgiram em minha mente enquanto assistia ao espetáculo.

O texto, baseado em uma obra de Plínio Marcos, aborda o conflito psicológico de um ser em busca de respostas sobre sua própria existência. A encenação de Filipe Monte Verde é cuidadosamente trabalhada, com movimentos precisos e fluidos. Um corpo intenso, entregue, expansivo e expressivo prende nossos olhos aos atos daquele palhaço em epifania.

A sonoplastia é um destaque à parte e essencial para a narrativa. É ela quem define o tom e o ritmo das cenas, elevando a intensidade de cada momento. Cuidadosamente harmonizada com as emoções do personagem, a dinâmica entre o silêncio e os ruídos intensifica a experiência sensorial, conduzindo o público a mergulhar profundamente no íntimo daquele palhaço.

“RECORDAR, voltar a passar pelo coração” [Teatro Adulto] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

É sempre complexo julgar trabalhos em processos e exercícios cênicos. Pois supõe-se que o trabalho exposto ao público está acabado e sabemos que no universo das artes cênicas isso é um mito em muitas das vezes. Digo isso pois é comum que o trabalho dos atores, a cena em si, amadureça com a repetição e ganhe definições mais interessantes. Afinal, é a repetição a mola propulsora do artista – a repetição e a ausência de medo de se investigar. Em “RECORDAR…”, Sol Faganello conduz os aprendizes da turma de atuação do Módulo Vermelho da SP – Escola de Teatro e optou por trabalhar fragmentos de textos, que aparentemente não se conectam e acaba parecendo uma grande colcha de retalho, o que desfavorece o todo, pois o público percebe logo o jogo cênico proposto e esmorece na cadeira. 

Em cena há fragmentos de textos como os clássicos “Medeia” e “A alma boa de Setsuan” junto com textos contemporâneos como “Tom na Fazenda”, “Por Elise” e “Cérebro Coração”, que são de conhecimento de “gente de área”, digamos assim. Respectivamente escritas por Eurípides, Bertolt Brecht, Michel Marc Bouchard e as atrizes Grace Passô e Mariana Lima. Para citar alguns exemplos. A forma como Sol amarra e “desamarra” as cenas é didática e escolar, digamos assim. Um público mais atento observa que mesmo no coletivo alguns alunos simplesmente se apagam. Seja pela falta de coordenação, de tonos, de presença cênica mesmo, não é fácil, convenhamos. 

O que chama atenção – positivamente – no exercício é a forma como a direção, com assistência de Luciana Schwinden, trabalhou com eficiência o texto na boca dos alunos – o que é um diferencial de outros resultados da própria instituição, diga-se de passagem. Vale destacar Esther Queiroz que abre o exercício (e depois some da apresentação) com muita propriedade. E estabelece um nível alto para que os colegas de cena se apropriem do seus textos. Não é tarefa fácil. Outra “entrega” que chamou a atenção foi a de Danilo Narciso para o hermético texto de Mariana Lima. Numa possível ausência de compreensão de sentido, explorar a palavra na boca e no corpo é uma opção potente para se buscar um caminho.

Jasão e Joana, não são personagens de fácil assimilação, nem Chen Tê, nem Tom e Francis – nesse último caso, por se tratar de uma obra (Tom na Fazenda) com o qual esse que vos escreve tem muita familiaridade, não deixou de ser curioso o recorte escolhido. Já que se trata de personagens cheios de contradições, que foram resumidos em poucas ações: o desejo e a morte. 

Talvez “RECORDAR…” seja sobre isso, a coragem de se jogar e voar em cena. Mesmo que nem todos consigam alçar voo nesse momento – pois todos tem seu tempo – supõe-se que o trajeto foi ensinado.

“Hipóteses sobre a Construção” [PerforMix] | por Beatriz Porto [@beatrizpfg]

O artista, Renan Marcondes, atravessa a praça fazendo algumas paradas. A cada uma delas, ele tira objetos corriqueiros da bolsa (coisas como réguas e lápis) e usa eles de apoio no mobiliário urbano. Há um estranhamento em ver um homem parado e apoiando o braço em um ou dois lápis, mas a imagem logo se perde no meio da Praça Roosevelt, lugar em que, convenhamos, podemos esperar que qualquer coisa aconteça. “Causo” curioso em relação à performance foi minha busca por ela, que durou cerca de 15 minutos, uma vez que não havia especificação de onde na praça ela começaria. Até que eu encontrasse o artista, fiquei encarando diversas pessoas numa busca do que me parecia performático ou minimamente parecido com a sinopse da performance. Entendo que a isso se poderia responder “é uma ótima performance em si”. Sim, mas para além disso, me pergunto também o que isso diz sobre a relação que algumas performances estabelecem com o público. O objetivo da performance era ser vista? Por quem? E para dizer o quê?

“Por Zenturo: que tempo é este de estar?” [PerforMix] | por Fernanda Araújo [@nanndaaraujo]

Um jeito interessante e provocativo de refletir sobre as nuances que fazem da vida de quem mora na cidade de São Paulo um tempo acelerado, infértil e desconectado das experiências físicas.

Foquei em três ações: as pessoas na plataforma, o casal sem conexão física e as mulheres plantando flores no concreto. Essas performances, para mim, dizem muito. E, por terem ocorrido na praça, bem no centro da cidade mais movimentada da América Latina, o contexto se torna ainda mais revelador.

A interação com o movimento da própria praça (ciclistas passando, crianças querendo interagir com o que estava sendo exposto, um morador de rua andando entre as encenações) complementou e enfatizou a reflexão proposta pelo grupo.

Vivemos uma sociedade acelerada, que corre sem sair do lugar, que não tem mais solo fértil para novas vidas e que já não sabe lidar com pessoas de carne e osso. E a pergunta que fica é: qual o objetivo de tudo isso?

Ainda não tenho respostas para os múltiplos questionamentos que surgiram apenas ao observar a performance, mas me senti satisfeita por ter sido provocada, algo que, para mim, deve ser um dos principais objetivos de qualquer expressão artística.

Além de tudo o que me agradou, houve momentos em que senti que algumas interpretações duraram um tempo excessivo, causando um certo desconforto, que pode ser, ou não, intencional. Esse incômodo, na minha visão, também pode fazer parte da crítica proposta pelo grupo, pois nos coloca frente a frente com os aspectos que temos dificuldade de encarar em nossa vida cotidiana.

“As Histórias que os Teares nos Contam” [Contação de Histórias] por Paulo Maeda [@paulomaeda1]

Uma linha liga um ponto ao outro, dependendo da perspectiva um ponto é o início e o outro lado o fim. A idealizadora Adriana Ximenez tece uma colcha de dois retalhos, um deles é o conto ‘A Moça Tecelã’ de Marina Colasanti e o segundo ‘O Pássaro do Poente’, um conto popular japonês. Escolhas acertadas por suas características, que parecem próximas, mas que encontram riquezas em suas diferenças. Em comum – a máquina de tear! Portanto, mais que acertado escolher como prólogo, e de forma bem didática e lúdica, encantar a plateia com jogos enquanto apresenta como é a tal máquina.

O conto (ponto) escolhido para ser o início é o de Colasanti, a protagonista tem um dom, tudo o que tece se transforma em realidade, seus desejos e suas faltas ganham carne e osso, tamanho poder é logo controlado por um homem, também criatura tecida, torna-se possessivo, controlador e tudo consome…a tecelã diante de tal absurdo toma uma decisão! Agora torna-se ciente do protagonismo e não dependerá mais da decisão do outro para viver.

A segunda história contada parte de um conto japonês, um jovem camponês salva uma cegonha ferida durante um inverno, na sequência dá abrigo a uma jovem perdida que pede abrigo e por lá vai ficando, criando vínculo e vivendo com o camponês, ela quer ajudá-lo nas contas da casa e sugere que o marido venda tecidos que ela poderia tecer. Assim ela cria tecidos maravilhosos que são vendidos por boa quantia de moedas de ouro na feira da cidade. Mas existe uma condição, que ele a deixe trabalhar por três dias e três noites e não a espione… o homem é curioso, como Orfeu que não consegue deixar de olhar para trás, o camponês não segue o acordo e assim tem uma surpresa desagradável.

As histórias são contadas com brilhos nos olhos, a contadora cria imagens com as palavras e com delicadezas em miniatura, em um cenário que cabe numa mala. Também consegue criar bons momentos para criar pontes de diálogo com quem escuta as histórias, colocando público em movimento físico e mental para estar atento. A contadora de histórias com diferentes texturas nos dá a força dessas personagens.

“Quando o Amor Chega?” [Contação de Histórias] por Paulo Maeda [@paulomaeda1]

“Quando o Amor Chega?” é uma releitura de “Quando o Amor Chegar”, o poema de Sarah Kay e Phil Kaye passeia por uma hipotética história amorosa, entre duas pessoas, mas também pode ser lido como percepções humoradas dos diversos caminhos que nossas relações vão percorrendo durante nossa existência, às vezes desenfreados, às vezes extremamente solitários.

Juliana Andrade começou a leitura um pouco ansiosa, mas com o decorrer do tempo foi se soltando e jogando mais com seu colega de cena, Rodrigo Medinilla, que criou boas imagens com suas partes do poema. Ainda podem se apropriar mais de algumas brincadeiras propostas pela autora e pelo autor do original, o texto é um bom exercício para experimentar a troca em cena. Ele permite nuances e coros divertidos.

A interrogação do título poderia ser uma escolha também pensada para a adaptação do texto como um todo. Sempre acho curioso jovens atrizes e atores se desafiarem a falar um texto sobre amores mais longos, ou momentos mais maduros de relacionamento, é fácil cair numa cilada. Diferente da afirmação e a certeza do original, ao escolher a dúvida pontua a juventude… por que não se aproveitar disso então?

“O Acaso Escolhe um Conto” [Contação de Histórias] por Paulo Maeda [@paulomaeda1] 

É importante para um contador de histórias visualizar minuciosamente o que está nos falando. Se a casa que ele descreve não possui cor ela perde vida, distancia o espectador, perde rapidamente o interesse. Péricles Raggio, o contador de história de “O Acaso Escolhe um Conto” observa com carinho as imagens narradas, uma casa amarela, a força usada por uma formiga ao subir uma encosta, o desespero de um pássaro ou de um pequenino grão de areia.

Citando somente uma das várias histórias que foram contadas, um jovem durante seus sonhos recebe uma estranha mensagem, repetidamente – para ir até a ponte de Londres. Cansado e querendo resolver logo decide ir até o local do sonho, lá espera e nada acontece, passa um dia, passam dois dias, no terceiro ele recebe um sinal inesperado e por conta disso sua vida vai mudar para sempre.

Foram diversas histórias sorteadas, um número na medida. E é preciso pontuar a memória do intérprete – cada história era sorteada de uma caixinha repleta de contos, pelo que pude notar de diversos contextos e épocas diferentes. Não só um contador de histórias, mas também um colecionador de histórias, Péricles conquista a plateia com uma elegância em suas narrativas.  

“BLABLACAR” [AutoPeças] | por Fernanda Araújo [@nanndaaraujo]

Nunca tinha vivido uma experiência teatral como essa e achei a proposta muito agradável e complementar ao Festival Satyrianas. Você entra em uma limousine e assiste a duas personagens dialogando nos bancos de motorista e passageiro. A encenação dura 20 minutos, mas é um prazeroso respiro para intercalar com os demais espetáculos.

Assisti à sessão das 20h30 da sexta-feira (15/11) e não sei como foram as demais esquetes, mas senti que poderia ter existido ainda mais interação com o público. Talvez alguém descesse e viesse para a parte traseira, se colocando mais próximo da plateia. Como a proposta é uma experiência diferente de teatro convencional, acredito que uma maior troca com o público transformaria ainda mais esse momento, deixando-o mais instigante.

De modo geral, é uma proposta interessante, que vale a pena ser vivida, e amplia as referências de contato com o teatro. Uma nova forma de experienciar e ser provocado, com uma interação íntima que desafia a noção tradicional de encenação, tornando-a mais pessoal e envolvente.

“Clandestina” [DançaMix] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

A Satyrianas completa 25 anos nesta edição e é curioso ver como o projeto mudou com o passar dos anos e se adaptou, por assim dizer as demandas. Se ele se ampliou em quantidade e linguagens, perdeu o desafio que proporcionava aos corajosos varar a madrugada maratonando teatro. O evento abriu margem para muitos artistas, o que faz com que essa “feira” cultural oferte infindáveis opções e desafie o público a encontrar trabalho de boa qualidade, ou “acabados”,  por exemplo.

Dentro da programação do DançaMix, Allany Leone apresenta o pocket show de dança flamenca, intitulado “Clandestina”. Com curta duração (20 minutos) o trabalho faz uma breve passagem por essa manifestação artística de origem judaica/árabe que dialoga com Tangos e Fandangos – por exemplo. A coreografia com cerca de cinco músicas pareceu sumir na tenda armada tendo como fundo a base da Polícia Militar. Mesmo sem uma dramaturgia a contento, Allany – impecável em seu figurino e maquiagem – atraiu a atenção dos passantes para a honestidade de sua dança. 

Essa Caixa de Pandora, chamada “Satyrianas” tem desses momentos. Nunca se sabe quando se poderá acompanhar uma epifania, como a que Allay apresentou. 

QUINTA-FEIRA – 14 DE NOVEMBRO

“Engolindo mágoas em doses homeopáticas” [Teatro Adulto] | por Fernanda Abegg [@fernandabegg]

Interpretada por um trio de mulheres de diferentes gerações, a peça explora o ser “mulher” hetero, cis e branca em uma sociedade patriarcal, destacando as opressões vividas principalmente no âmbito doméstico e nos relacionamentos. O texto é poderoso, expondo a perpetuação de padrões que mantêm essa figura social como propriedade domesticada, sobrecarregada e violentada ao longo das décadas.

As cenas são cuidadosamente construídas, enquanto o cenário, inicialmente sutil, ganha força ao transformar objetos cênicos em imagens que enriquecem a narrativa. Beliza Trindade, Juliana Aguiar e Lilian Menezes dão vida às realidades das décadas de 1940, 1980 e dos dias atuais, envolvendo o público na incômoda percepção de que, apesar da passagem do tempo, a opressão persiste de forma inquietantemente atual.

“Despedaço para a Hypatia – uma Ode ao Teatro de Arena” [Teatro Adulto] | por Alexandre Gnipper [@alexandregnipper]

O espetáculo “Despedaço para Hypatia” é um verdadeiro tributo ao espírito contestador e à força simbólica do Teatro de Arena. A peça combina potência dramatúrgica e uma encenação minimalista que remete à essência do teatro político brasileiro, refletindo sobre a destruição e resistência do feminino em tempos de opressão.

Com um texto pulsante e provocador, a obra celebra a figura de Hypatia como metáfora da luta pela liberdade de pensamento e expressão. A atriz se utiliza do seu próprio ser para preencher as lacunas da vida da matemática e pensadora antiga Hypatia, cujo apagamento da história e esquartejamento do corpo são simbolicamente representativos de um modus operandi do social patriarcal e opressor que perpetua até os dias de hoje.

A peça encontra o equilíbrio entre o didatismo e a poesia, sem jamais subestimar a inteligência do espectador. “Despedaço para Hypatia” não é apenas uma homenagem, mas uma reafirmação da relevância do teatro como espaço de debate, memória e resistência cultural.

“A Mulher no Espelho” [DramaMix] | por Fernanda Abegg [@fernandabegg]

Com um texto sombrio e alucinado, este monólogo mergulha a personagem em um diálogo visceral com o som de seu espelho, desnudando o descontrole dos pensamentos que ecoam na solidão. A inquieta, e talvez inconsciente, busca por um contato conduz a atriz Jacqueline Lince a uma performance intensa, onde a lânguida loucura e o vazio existencial clamam por socorro em meio às alucinações sonoras.

Nesse contexto, a trilha sonora se destaca como o fio condutor da peça. Criada remotamente pelo compositor Alexandre Gnipper, ela não apenas eleva a experiência sensorial, mas também consolida a atmosfera onírica e inquietante. Complementando isso, o jogo de luzes e a maquiagem transformam o palco em um espaço de imagens impactantes. Uma obra visceral, profundamente conectada à experiência de quem já enfrentou os labirintos da mente.

“Hienas” [DramaMix] | por Fernanda Abegg [@fernandabegg]

No submundo urbano, um sequestro simples se transforma em uma trama de traições, interesses mesquinhos e alianças improváveis. Três homens são contratados para “dar um susto” em uma pessoa, mas logo descobrem que o alvo é o famoso jogador de futebol Reynaldão. A situação se complica quando dois deles começam a se afeiçoar pela vítima, que, aproveitando-se da ingenuidade dos sequestradores, manipula a situação a seu favor.

A história toma novos rumos com a descoberta de que Vanessa, a ex-mulher de Reynaldão, cansada das traições e escândalos do jogador, se revela como a verdadeira mandante do crime. Em uma mistura tragicômica de erros e uma dança de traição e violência, a trama sustenta boas reviravoltas. No entanto, a escolha da a ex-mulher vingativa, embora resoluta, deixa de lado uma oportunidade de subverter essa expectativa. Como resultado, no final se perde a chance de adicionar uma nova camada de complexidade à história.

A Casa de Bernarda Alba – Elenco Feminino [Teatro Adulto] | por Fernanda Araújo [@nanndaaraujo]

A brutalidade da repressão feminina, presente na sociedade há décadas e em várias partes do mundo, é o tema central desta peça. “A Casa de Bernarda Alba” é uma obra do escritor espanhol Federico García Lorca, adaptada pelo grupo Os Satyros para celebrar seus 35 anos de história.

Se a militância e a resistência em relação às questões de gênero são marcas do grupo, ao escolher essa obra, eles reforçam suas lutas mais uma vez. A peça aborda a repressão de gênero em uma Espanha rural de 1936 e, com pequenas adaptações no texto, traz essa discussão para a contemporaneidade de forma enriquecedora.

Para mim, o aspecto mais admirável dessa apresentação é a direção artística e todos os elementos que permeiam os diálogos. O espírito espanhol está presente em toda a atmosfera da peça, desde o figurino até a escolha das percussões corporais, executadas com uma harmonia impressionante. A sonoplastia, por sua vez, é afiada e potente, contribuindo para uma produção extremamente generosa com seus espectadores. É uma obra completa, enriquecedora e cativante, que faz a plateia mergulhar na história e se manter atenta do início ao fim.

Assisti apenas ao elenco feminino, e que trabalho magnífico! Costumo observar atentamente os movimentos corporais e as expressões faciais, buscando os detalhes que transformam um ator ou atriz na verdadeira incorporação de sua personagem diante dos nossos olhos. Nesse aspecto, o elenco é impecável. Cada expressão captura com precisão os sentimentos mais profundos das personagens, entregando performances repletas de detalhes e autenticidade.

Além do elenco afiado, a peça conta com uma equipe técnica que, em minha opinião, é quem realmente abrilhanta o espetáculo. É um trabalho belíssimo e coeso. Compartilho a ficha técnica completa abaixo, mas destaco especialmente os trabalhos de coreografia, trilha sonora, iluminação e preparação vocal, que fazem dessa peça um espetáculo inesquecível.

“Não aprendi dizer adeus” [Teatro Adulto] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

A morte é inerente e impalpável. A única certeza que nós temos. Diante do inevitável, a palhaça Leila, Simplesmente Leila (Bárbara Salomé), revela aos presentes que estão diante de uma mulher prestes a morrer. Essa última hora é compartilhada com todos, como que a nos dizer: e se fosse com você, o que você faria? 

Como todos, Leila é humana, e quer driblar a morte: para isso, vai se revelando falível e com caráter duvidoso. Envolve o público em suas falcatruas — pois como é de praxe na palhaçaria, quer que o outro se veja em suas mazelas. Com pitadas de “surto”, Leila vai se revelando “gente como a gente” e causando empatia, mesmo que a contragosto  — o que também é um dos artifícios do palhaço. 

Com direção de Rafaela Azevedo (a palhaça Fran, do renomado “King Kong Fran”), a montagem procura oferecer um olhar lúdico para um assunto tão delicado e complexo como a morte. Rafaela e Bárbara, portanto, navegam entre o deboche, o humor e o sentimentalismo de forma despretensiosa  — e talvez venha daí a força e potência do trabalho. 

Querendo beber e gozar, Leila, Simplesmente Leila, procura se apoiar no público para não morrer sozinha e inconformada. Tá cedo pra ela  — e, consequentemente, também para o público. Assim é a sensação que toma cada um de nós ao perder um ente querido. Esse didatismo às avessas tira um pouco a força cômica do trabalho, transformado em certos momentos numa sessão coletiva de psicodrama. Não chega a ser um demérito, é claro, mas “pesa” na encenação como um todo  — pois se sobressai no terço final. Por falar em final-final, a cena de Leila e seu vibador está entre os melhores momentos do trabalho; e a última cena, preparada ao som do público de olhos fechados, contando até vinte, é de uma beleza inquestionável. 

“O Circo que fugiu” [Teatro Adulto] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

No elevador da SP Escola de Teatro rumo ao 8° andar, o diálogo entre algumas pessoas era que “O circo que fugiu” havia sido destaque no curso de Humor da mesma escola, o que despertou curiosidade e comentário de todos nos minutos que antecederam a apresentação do espetáculo. O elenco, formado por alunos do Módulo Verde, traz à cena artistas de um circo em crise, que entra em colapso quando o dono do mesmo desaparece. 

Escrito por Gabriel Mesquita e Silvia Dias de Carvalho, com direção de Fabricio Rodrigues, o primeiro trabalho do Coletivo Xoxo não está preocupado apenas em fazer rir: quer mostrar que está conectado com a realidade precária da grande maioria dos artistas nacionais, enquanto o circo da ficção se torna um grande espelho do cenário cultural da cidade de São Paulo, por exemplo.

Em cena, personagens clássicos do imaginário circense subvertem o bom mocismo e são revelados em suas mazelas e necessidades. Isso faz com que o tom cômico entre o elenco varie entre o besteirol e uma comédia mais rebuscada, que não apela tanto. Esse desequilíbrio entre as composições dos artistas causam um ruído no todo, deixando a montagem irregular e frágil. Com curta duração, a montagem parece querer atingir o público de imediato, com piadas  — por vezes rasas  — rápidas, afeitas ao universo de sitcoms. O teatro, entretanto, cobra outro tempo: eis um fato a ser observado para que o trabalho possa crescer e ganhar estofo.

A preocupação com o tom político da montagem duela com o besteirol imposto de cara para o público, e acaba ficando solto na dramaturgia. O assassinato de Gabriel Renan da Silva Soares, em uma loja da rede Oxxo, ganha relevância no final  — assim como uma crítica ao governo de Tarcísio de Freitas. Mas e o circo? E aquelas pessoas/personagens? Tudo se dissolve rapidamente deixando o todo pueril e inconsistente.

Em se pensando no humor: se de um lado, o trabalho de Luy Paini como a jornalista investigativa se sobressai positivamente, a presença da “bicha louca” que tem corpo e voz de Pedro Lima não tem função da trama a não ser reforçar clichês e estereótipos. A personagem não é engraçada, não tem função na trama e parece servir apenas de escada  — ruim  — para o resto do elenco. 

“Viúva, porém honesta” [Teatro Adulto] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

“Viúva, porém honesta” é uma peça escrita em 1957 por Nelson Rodrigues. Descaradamente, é assumida como farsa: ou seja, não há preocupação com a coerência dos fatos nem com a composição realista das personagens — tornando-se uma grande peça-playground que o Grupo Maltras resolveu explorar. 

O argumento é, por isso só, uma afronta aos bons costumes: a filha do diretor do maior jornal do país resolve viver em luto eterno após a morte precoce do marido. Inconformado com a viuvez extrema da filha, o pai “move mundos e o diabo” para que a filha volte a ter uma vida sexual ativa. 

Homossexualidade, crenças religiosas, libertinagem, prostituição entre outros assuntos estão na pauta da dramaturgia de Nelson, que ganha reforço — por vezes exagerado e púdico — do grupo em questão. Dirigida por Carol Martinni e Ivan Bonari, a montagem perde a chance de provocar seu público de forma afrontosa — e, por que não, “sexual”? —, para se apoiar no humor escrachado e imediato, como se o mais importante fosse fazer o público rir; em demérito de provocar-lhe constrangimento e excitação quanto às possibilidades de ter onde “sentar” da ninfeta antagonista. 

Destaca-se a maquiagem dos atores, bem como o trabalho de Lucas Mendes (Madame Cricri) — que diante do caos que por vezes se instala na cena, consegue atrair a atenção com suas caras, bocas e comentários supostamente fora do script. Seria bom se, assim como a personagem de Madame Cricri, o público pudesse também, de forma sacal, debochada e assanhada, acompanhar as aventuras da ninfeta em busca de um homem que a satisfaça e a tire da tristeza. Quem nunca, né?

Só um Batom [DramaMix] | por Douglas Ricci  [@blogaus]

Será que o amor não tem limite? Ou será que ele estabelece a medida do suportável? Quanto de nosso esforço para ser bom é também temperado pela mesquinhez? Compartilhar a intimidade e a falência do corpo será um ato de compaixão?

A leitura dramática do texto de Antônio Duran  nos interroga a respeito dessas questões ao colocar em cena duas mulheres que compartilham suas vidas e veem surgir a necessidade de entendimento dos limites do amor quando uma delas adoece e morre. Antes de morrer ela pede a outra que a enterre usando só um batom nos lábios, nos oferecendo uma sofisticada metáfora do desapego.

É bastante gratificante quando a leitura dramática de um texto já apresenta alguns aspectos de encenação e aqui temos uma proposta que é delicada ao construir imagens que flertam com nossas ancestralidade e ideias sobre a vida após a morte, além de também ao pontuar o espetáculo com uma envolvente trilha sonora executada ao vivo por músicos no palco.

“E se…? Estudo nº 1 – Desespero, ressaca e êxtase” [DramaMix] | por Douglas Ricci  [@blogaus]

Quando a gente pensa na humanidade em seus primórdios, na mais ancestral das épocas, nos referimos a Idade da Pedra, ou seja, quando  ainda morávamos dentro das cavidades da superfície do planeta. Passamos então a manipular a natureza e usar as pedras pra construir o mundo que nos cerca. 

“E se…?”, leitura dramática apresentada no Festival Satyrianas, parece pensar nossa sociedade e nossas relações interpessoais a partir dessa metáfora da pedra: seu peso, sua dureza, sua importância estruturante, bem como sua maleabilidade. É o tipo de texto que, caso lido sem que se saiba que é uma peça de teatro, parece ser uma dissertação, seguindo a linha de raciocínio de autor como se estivéssemos ouvindo seus pensamentos. 

A leitura já apresenta traços muito interessantes de encenação — como, por exemplo, o próprio objeto (ou “ser”?) pedra que é instalado no centro da cena; os figurinos que criam silhuetas volumosas para as personagens; além das particulares marcações de cena, que desenham coreograficamente o espaço cênico minimalista. Tudo isso, conjuntamente, instigam o espectador a querer assistir a versão final da montagem do espetáculo.

“E se…? Estudo nº 1 – Desespero, ressaca e êxtase” [DramaMix] | por Fernanda Araújo [@nanndaaraujo]

O “e se” mora na cabeça de todos nós, e Vitor Julian, com suas analogias, metáforas, metalinguagem, perguntas e respostas, envolve-nos nesse universo inquietante através de sua dramaturgia. Ele propõe uma reflexão sobre o ser humano vivendo na maior metrópole da América Latina, em 2024, bombardeado constantemente pelos meteoros que caem do céu diariamente, provocando ansiedade e desespero em seu peito, enquanto busca responder a todas as perguntas indagadas.

A apresentação ainda está em processo de criação, e é representada por cinco atores que dão corpo e movimento aos questionamentos. A dinâmica de cada um apresentar um trecho da peça, por vezes, parece tão confusa quanto nossas próprias mentes podem ficar diante de tantas perguntas.

É uma obra contemporânea, dinâmica, vibrante e com grande potencial para refletir e provocar questões profundamente pertinentes ao nosso tempo. Um tema intimamente conectado com o público paulistano, que, como todo bom teatro, propõe expor uma realidade e ao analisá-la, quem sabe, provocar mudanças.

“Mapa Astral” [DramaMix] | por Douglas Ricci  [@blogaus]

Sou uma pessoa que gosta de astrologia. Acho sempre que faz todo sentido tratar do movimento da dança dos astros no céu, de suas conjunções, trígonos, quadraturas, oposições etc. Creio, de verdade, que a interpretação  da configuração do céu no momento de nosso nascimento pode nos fornecer valiosas informações sobre nosso percurso aqui embaixo. 

O protagonista dessa história também acredita nisso. Daí, então, quando acontece de sua tia falecer, ele tem um estalo: e se fizéssemos também um mapa de nosso “desencarne”? É assim que nasce então, neste espetáculo, o conceito de “mapa astral da eternidade” — que irá levar a personagem a descobertas inusitadas sobre o passado de sua família, suas histórias, comportamentos e hipocrisias.

Este bem humorado texto joga com a necessidade coletiva de sustentar crenças para explicar nossa existência absurda neste planeta no meio do nada do universo, tirando boas gargalhadas do público ao evidenciar o inesperado que está sempre à espreita para desmoronar nossas certezas.

“O que te trouxe até aqui” [DramaMix] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

Escrita por Renato Andrade, o drama ” O que te trouxe até aqui” revela um homem de meia idade com sua sexualidade mal resolvida, lidando com dores e doenças desconhecidas do público, que se mostra carente e fragilizado. O ponto alvo da peça é a vida de artistas que sobrevivem de aparências e o quanto isso causa males incontornáveis na subjetividade do indivíduo. Como se não fosse pouco as consequências de viver uma mentira, a dramaturgia de Andrade mergulha em um assunto nebuloso para o público gay: garotos de programas. 

O homem famoso, diante de uma vida de mentiras, preso num quarto de hotel, se vê vulnerável diante de outro homem com a metade da sua idade, que ganha a vida vendendo o corpo — e, por que não, “sonhos”? É essa falsa certeza de que se largasse tudo para viver os próprios desejos na companhia de outra pessoa que faz com que o personagem do “famoso” seja humanizada e desnudada para o público. A peça não aponta, entretanto, para uma saída: para este homem, tudo ao redor diz respeito à mentiras, interesses, poder de manipulação e compra; habitando a personagem um mundo destituído de empatia e final feliz. 

A leitura, que faz parte da programação DramaMix, teve direção de Warner Borges e leitura dos atores Avellon, Danilo Narciso e Thiago Ribeiro — este último dando corpo e voz à figura do produtor, que supostamente guia a carreira do artista (para onde, não se sabe bem). 

É provável que “O que te trouxe até aqui” merecesse uma esticada em sua dramaturgia para que os assuntos fossem abordados com mais profundidade. Tá tudo ali, mas será que o quanto precisamos para que as verdades sejam reveladas a contento?

Invisibilidade [Cinema] | por Douglas Ricci [@blogaus]

O filme apresenta a personagem Michele, uma mulher trans, em um dia em que volta do trabalho, chega em casa e então resolve sair pra dar uma volta e beber uma cerveja. A princípio, a obra — que vai se construindo em uma sequência de imagens sem falas — parece abordar a rotina da personagem flagrando sua invisibilidade no circular pela cidade. Ela parece buscar o afeto de alguém, no entanto isso não acontece. Ao mesmo tempo também narra o percurso do que será o agressor de Michele no desfecho da história.

Em ambas as narrativas, parece haver um interesse em mostrar a invisibilidade dessas personagens em seus percursos cotidianos, até que esse último personagem agride Michele quando esta parece estar trabalhando na rua como prostituta. Quando isso acontece, o filme que parecia estar rascunhando um discurso sobre invisibilidade acaba caindo em um tipo de caricatura de uma situação de violência, perdendo sua argumentação (que parecia que ia se complexificar), permanecendo em um ambiente de discussão já muito explorado nas muitas narrativas de violência contra pessoas trans que vemos diariamente na vida real e na arte.

Por fim, o filme também acaba caindo em uma situação delicada ao colocar um ator cis para fazer uma personagem trans — algo que, nos dias de hoje, soa completamente fora do que seria empreender uma séria discussão sobre a violência vivenciada por essa população.

“Mazela” [Cinema] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

Realizado com recursos da Lei Paulo Gustavo de Diadema, “Mazela”, curta de Paula Luppi com duração de 8 minutos, foi contemplado para ser um videoclipe — ideia abandonada na hora da realização. Não à toa, o motivo é claro, a história se debruça sobre a violência que acomete mulheres dentro de suas próprias residências, sem que as mesmas percebam que são alvos de tal agressão.

Mariana (Silvana Fagundes) está desempregada, escreve poesias nas horas vagas e supostamente vive uma relação abusiva com seu namorado, que trabalha e sustenta a casa. O curta mostra não apenas uma suposta pressão psicológica do namorado, como também revela sinais de cárcere privado e chantagem emocional. O que não é pouca coisa, pensando que no Brasil a taxa de feminicídio é alta — com a média diária de 4 mulheres mortas. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, uma mulher é estuprada a cada 6 minutos, e as agressões variam entre violência doméstica, ameaças, estupros, perseguição/stalking, violência psicológica e claro, assassinatos — em 2023, 1.467 mulheres perderam suas vidas.
O curta de Paula Luppi tem roteiro simples e de fácil assimilação, não deixando dúvidas sobre sua real intenção. Embora não seja explícito quando se pensa nas agressões que a protagonista sofre — bem como numa possível doença emocional —, algumas escolhas deixam claro e marcam a real intenção da obra, bem como apresentam pistas soltas que o roteiro, escrito a quatro mãos por Paula, Beatriz Ribeiro, Jaqueline Quadros e Silvana Fagundes também revela, como uma foto de Simone Beauvoir ou a biografia de Viola Davis.

“Mazela” estreou esse ano, e sua exibição seguramente abrirá diálogos sobre temas tão urgentes e necessários — o gênero, o feminicídio, as violência diversas que acometem mulheres todos os dias. 

“Saudade fez morada aqui dentro” [Cinema] | por Rodolfo Lima [@ilusoesnasalaescura]

O filme “Saudade fez morada aqui dentro”, dirigido por Haroldo Borges e que estreou em 2022, traz à tona um tema pouco explorado no cinema nacional de forma sutil e marcante. Bruno (Bruno Jeferson) tem 15 anos, vive com sua mãe e irmão, e sofre de uma doença degenerativa que lhe tirará a visão em algum momento. Antes que isso de fato ocorra, o espectador acompanha Bruno em sua rotina de adolescente e, consequentemente, verifica o impacto que isso ocasionará em sua rotina. Numa das frases do filme, o protagonista diz: você já viu cego estudar?

O tema é delicado e emblemático, principalmente se pensarmos em lugares mais carentes de informação, estrutura educativa e suporte emocional para lidar com tal assunto. A primeira cena é justamente um debate entre a mãe do aluno e a escola (e seus personagens) sobre o futuro de Bruno: o que acontece quando numa escola pública uma criança perde a visão? O longa denuncia o despreparo a que a criança está sujeita. Não à toa, e talvez pela sua abordagem delicada, está na lista dos 12 candidatos brasileiros que concorrem a uma vaga como representante do país no OSCAR 2025 na categoria de filme estrangeiro. 

Apesar do tom dramático do assunto, o roteiro equilibra momentos dramáticos e tensos com outros de superação e leveza, fazendo com que o público se envolva e absorva a história de Bruno como se fosse a de um ente querido. Isto ocorre, principalmente, na cena final, que potencializa a vida de Bruno para além de uma deficiência — mostrando que um sujeito não deve jamais ser marcado por isso e que, com o devido apoio (emocional, familiar, por exemplo), a vida segue e pode ser bonita e emocionante. 

Filmado no sertão baiano, com elenco de atores não profissionais e roteirizado por Borges e Paula Gomes, o filme dialoga com questões importantes e pungentes da realidade dos adolescentes — como a sexualidade, por exemplo. Vale ressaltar a presença luminosa e natural do elenco feminino jovem. 

Tendo conquistado mais de vinte prêmios em festivais na Argentina, Rio de Janeiro, Rio Grande de Norte e Paraíba, “Saudade fez morada aqui dentro” pode ser assistido amplamente pela plataforma de streaming Netflix.

“Patampa do Amor” [Teatro Adulto] | por Douglas Ricci  [@blogaus]

Este delicado e tocante monólogo é aquele tipo de peça que partindo das vivências pessoais do performer, constroem uma narrativa que atinge o público com uma certeira identificação. Temas relacionados à infância, a relação afetuosa e conflitiva com nossos pais, a descoberta da sexualidade e a constatação de sua fluidez são abordados na peça pelo performer que parece pegar em nossas mãos e nos levar para passear pelo labirinto de suas memórias formativas.

Filho de pais surdos e mudos, o performer narra suas histórias simultaneamente em libras, exceto os momentos em que ele vai falar de sua iniciação sexual com outras crianças aos cinco anos, porque não é para a mãe dele saber. 

Esse jogo entre histórias possivelmente reais e jogos de ficção, hipérboles narrativas, e ações performativas – como quando ele come uma beterraba inteira, e que é a Patampa do título – faz da peça um dos exercícios cênicos mais envolventes que eu vi no Festival até o momento. Destaco também o interessantíssimo figurino feito da sobreposição e encaixe de várias camisas brancas e um coração feito de linha vermelha onde ele guarda com todo amor sua Patampa.