FESTIVAL SATYRIANAS
SPRINTS CRÍTICOS | DEUS ATEU

SPRINTS CRÍTICOS | DEUS ATEU

Neste ano, saudando os encontros e procurando responder aos materiais apresentados pelas mais variadas produções que visitam o festival, o site Deus Ateu estará presente na mostra e apreciará um amplo recorte de obras. Os Sprints Críticos
serão textos rápidos e disparados logo após as apresentações! Com coordenação de Marcio Tito e Mariana Ferraz, e com a colaboração da equipe que diariamente publica no site, o Deus Ateu entregará algumas dezenas de respostas, perguntas,
análises e comentários especiais – Com Alexandre Gnipper, Beatriz Porto, Thamiris Dias, Tiago Horbatow, Luiz Vieira, Douglas Ricci e Carolina Lira.

Sprints Críticos – Deus Ateu | 12 de outubro, quinta-feira 

“Tião Quixote”, por Beatriz Porto

Tião Quixote é peça feita por muitas mãos: isso é perceptível pelo cuidado com o cenário, figurino e maquiagem; pela escolha de fazer uma adaptação de um texto literário de forma autoral com a realocação cultural para o interior mineiro; pelas músicas que convocam a imaginação para os sonhos de um homem da roça que, já passados muitos anos de cabeça enfiada em livros, começa a ver o mundo como se fosse o aventureiro e lunático Dom Quixote. A quantidade de pessoas envolvidas na peça é trazida ao final do espetáculo, em agradecimentos calorosos que dão dimensão da movimentação cultural pela qual o grupo é responsável em Guaxupé-MG e que parecem intrinsecamente conectadas às escolhas do grupo para a encenação. Assim, temos a dimensão de que esse teatro de maquinário exposto vem para dar vida a um imaginário próprio e comunitário.

Dar conta cenicamente da imaginação fértil de Quixote, que vê gigantes no lugar de moinhos, é um desafio muito animador para quem faz teatro, pois evoca o que o ofício tem de melhor, que é fazer ver algo que não está ali fisicamente, ou fazer ver, em um objeto corriqueiro como um escorredor de macarrão, um capacete de cavaleiro. Todas as soluções do grupo levam para esse encantamento da capacidade de imaginar. 

A imaginação do espectador, contudo, depende também da imaginação do ator em cena. As cenas de contrarregragem e transformação de objetos, muito bem coreografadas e certamente muito pensadas pelo grupo em significado, precisam também ser preenchidas da intenção em transformar o objeto em seu correspondente ficcional. Para além da presença da fita como signo, por exemplo, é importante a liberdade do brinquedo: e se essas fitas fossem moinhos que se transformam em gigantes, como eu me relacionaria com elas? Se a escolha é por expor o maquinário para que se veja o teatro da brincadeira, da imaginação, é importante que a vontade de contar a história ajude a dar vida aos objetos.

Para além deste detalhe técnico, a peça traz para jogo uma característica própria do personagem Dom/Tião Quixote que é sua forma anacrônica e encantada de ver o mundo – no romance de Cervantes, ele age como cavaleiro medieval que imagina grandes aventuras no mundo moderno. Temos então, duas visões de mundo colocadas na peça: a de Quixote, que tem um encantamento por um passado glorioso descrito nas aventuras dos livros, e a de Sancho Pança, seu amigo que tenta chamá-lo para a realidade – na peça, inclusive, lembrando que ele não cuida da horta e não frequenta sua comunidade há muito tempo. O grupo, parece, se utiliza desse mote para enaltecer o valor da imaginação, da arte, sem perder de vista o contraponto de que a vida tem suas demandas materiais. A discussão tem pano pra manga e não é resolvida na peça de forma moralizante, o que nos dá espaço enquanto espectadores para seguir na prosa após o espetáculo.  | Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

“Relatos Selvagens”, por Mariana Ferraz

O espetáculo “Relatos Selvagens” – livremente inspirado no filme homônimo, apesar de não informá-lo em sua sinopse –, faz coincidir uma espécie de cabaré surrealista com o drama cinematográfico argentino. Com um elenco numeroso, engajado e bastante fresco – a grande maioria dos atores e atrizes encontra-se na faixa aparente dos dezoito aos vinte e cinco anos, salvo algumas exceções –, “Relatos Selvagens” combina teatro, dança e música com a beleza do ímpeto potencial que, frequentemente, só se encontra num conjunto desta jovialidade.

Ressalto, porque louváveis, dois pontos quanto à peça: o primeiro, como não se poderia deixar de mencionar, refere-se ao logro hercúleo de coordenação, articulação e coesão de um corpo teatral tão numeroso. Combinar textos, passos coreográficos, canções e mobilização de objetos cênicos entre tantos integrantes é mesmo um desafio e tanto – cumprido, com honestidade e entrega, pelo elenco de “Relatos Selvagens”. O segundo, não menos importante, diz respeito à valorização – mesmo em se tratando de um grupo abundante – de cada uma das partes que o compõem. Todos e todas desempenham, em algum momento, uma cena de maior destaque, relevância e luz: fazem-no, vale ressaltar, sem descolar-se do conjunto, sem que a proeminência os encaminhe para outro lugar.

Registra-se, sobre alguns momentos do espetáculo – sobretudo nas cenas coreografadas e na esquete baseada no atropelamento de uma mulher gestante –, dificuldade considerável de compreensão do texto proferido pelos atores e atrizes; seja por questões de impostação vocal ou articulação, o aproveitamento de alguns trechos da obra foi comprometido por esta falta quanto à projeção e à dicção com que o elenco entregou o material. Nada que, com alguns ajustes técnicos e pedagógicos, não possa ser resolvido – enrobustecendo, mais ainda, uma peça cujo formato, quando amadurecido, aponta para o êxito seguro. | Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

Devaneios de Marias”, por Mariana Ferraz

“Devaneios de Marias”, monólogo da atriz maranhense Cris Cardoso, é uma obra de teatro imprescindível. Sobretudo, porque trata da dificílima temática do abuso e da violência contra a mulher – com a devida abrangência quanto à diversidade de pautas que permeiam a estrutura patriarcal e que submetem, todos os dias, milhares e milhares de irmãs. Do tio pervertido ao professor de colégio, passando pelo vizinho, pelo cônjuge e pelo próprio pai, “Devaneios de Marias” é uma convocação à consciência e um alerta de urgência ao espanto, à tragédia e à calcificação da brutalidade..

Encarnando a personagem que dá título ao espetáculo – mas que poderia ter recebido quaisquer outros vocativos, porque muitas fomos e somos Marias –, a atriz supracitada mobiliza contribuições documentais, depoimentos e testemunhos reais para escancarar, com crueza e denúncia, esta sórdida realidade. Para tanto, destaco como recurso cênico delicado e assertivo, a mobilização de uma bacia com água com a qual a atriz vai molhando seu corpo e seus cabelos no decorrer do espetáculo: aliás, é precisamente a água – este elemento tão feminino e portador de eloquente potencial de transformação – que acolhe as Marias de Cris Cardoso em lágrimas, delírios salivares e banhos de purificação. Há o pranto, dá-se a queda; mas há também o rito e a coragem de transformação.

Ao término do espetáculo, ouviu-se a persistência do choro da plateia que ocupava a Sala Paysandú da Galeria Olido, local em que realizou-se o espetáculo. Com Cris Cardoso, em exímia e valente interpretação, estabeleceu-se a cumplicidade e declarou-se o profundo agradecimento porque alguém se dispusesse a vocalizar, com bravura e destemor, histórias tão difíceis, tão sensíveis, tão horrendas – mas, também por isso, tão indispensáveis de se trazer à ribalta. | Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

“Útero”, por Thamíris Dias

Vazio. Silêncio. Útero. Quais palavras atravessam o útero, e qual o significado delas numa sociedade patriarcal que define o papel de corpos uterinos como unicamente o de parir? O palco inicialmente vazio é preenchido por palavras que perpassam a pele, a raiva, a dor e o sangue. Estas palavras abrem caminhos para dizer sobre a objetificação do corpo uterino, a violência obstétrica e os muitos buracos. Buracos que são tanto físicos quanto os que atravessam a essência de um ser não visto em sua completude, reduzido a função de gerar e parir.  À medida em que as palavras se desdobram no palco, uma narrativa se constrói, baseada nas conexões internas permeadas por ideias preconcebidas em um sistema misógino, machista e homofóbico. A prática de ser constante e naturalmente invadida, sem espaço para opiniões e decisões sobre o próprio corpo, transforma a experiência de estar viva em um território de medo, desamparo, invalidez e violência. 

Quanto um corpo uterino sabe o que permitiu e o que foi imposto? Enquanto corre livremente pelas marcas do passado, a personagem relembra seus dezessete anos, ela está feliz até que seu corpo é violado por outro, as sensações se confundem e não sabemos mais quem é o outro, onde está a menina feliz e o que fizeram dela.  “Útero” nos convida a olhar estas palavras de perto, a adentrar um lugar cheio de experiências e escuros, traz à luz temas cruciais para a construção de um mundo mais justo em que pessoas possam se reconhecer além do útero e do papel estabelecido e, muitas vezes, desempenhado.É uma obra corajosa, que nos desafia a encarar as realidades de corpos que são frequentemente reduzidos a meras funções reprodutivas e sexuais, trazendo à tona uma discussão profunda sobre equidade de gênero, o direito ao próprio corpo e a necessidade de redefinir os papéis em nossa sociedade.| Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

“Eu te amo sozinha… ou qualquer coisa sobre cafeína”, por Carolina Lira

A peça “Eu te amo sozinha… ou qualquer coisa sobre cafeína” remonta um mar de memórias que surgem em decorrência de uma parceria amorosa que já não existe mais. A dramaturgia se encarrega em trazer as lembranças (e as dores advindas delas) que o elenco em cena se compromete em rememorar. A ambiência criada dentro da sala cheia do que já não existe mais é ao mesmo tempo acolhedora e desoladora.

Uma experiência sensorial acontece logo no início, antes de começar o espetáculo: o público é recepcionado com um cafezinho quente e adentra ao espaço onde vai acontecer o jogo cênico abraçado pelo aroma e sabor do café. Em cena junto aos membros da Cia. do Nada, canecas  e grãos de café são objetos cênicos que se somam ao enxuto cenário formado por caixotes de feira e permitem com que se entre em contato com a arte de poetizar cotidianos.

O texto de Carina Falchi ganha contribuições dos membros do coletivo e as memórias ali trazidas ganham força com as vivências que foram experienciadas e são compartilhadas de forma sutil e densa com o público ali presente. A Cia. do Nada questiona amor e vício com hábitos do cotidiano ao trazer um ato tão corriqueiro como tomar um café para o desenrolar das cenas. É uma peça que transborda amor e sentimento e aquece o coração. | Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

“LOBI”, por Luiz Vieira

As formas. As cores. A imagem. LOBI é um espetáculo que nos convida a um mergulho profundo na ancestralidade de um povo, de uma história que rasga o verso e esmiúça as feridas abertas diante do público. Tudo se potencializa com a voz e o corpo potente da artista Rose Mara, que carrega consigo uma bagagem extensa de uma cultura que não se perdeu nas dobras do tempo.

A peça, que também funciona como um manifesto, se movimenta com o olhar atento e curioso do público, que busca decodificar símbolos, compreender as narrativas e deslocar o olhar para o passado, presente e futuro.

O corpo. A carne que agoniza. A fala. Tudo flui como um mar revolto que, depois do turbilhão, espera as águas mansas, a maré baixa. A atriz também traz consigo um figurino exuberante, além de uma história marcante. A arte se torna cais, busca respostas, profetiza novos tempos. Algo precisa mudar. Além disso, LOBI é um espetáculo que deixa um recado muito claro: a arte se faz no coletivo. As fronteiras entre a artista e o público já são ultrapassadas logo na primeira cena da peça, quando ela pede que alguns retalhos com pinturas que estão no chão sejam colocados em sua saia. A partir disso, embarca-se numa viagem coletiva, que ao final do espetáculo é celebrada numa dança em roda. Impossível assistir LOBI e não sair transformado de alguma forma. | Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

“Tremores: sobre a luz dos vagalumes”, por Luiz Vieira

Deixando a marca como um dos trabalhos mais eloquentes das Satyrianas 2023, o espetáculo ‘Tremores: Sobre a Luz dos Vaga-lumes’ tem como força motriz um elenco jovem, cheio de vontade fazer acontecer e que tem pressa para saber o sabor da fruta!  Transitando entre a comédia e o drama, o espetáculo busca diálogos intergeracionais sobre identidade de gênero e sexualidade.

A peça mostra-se, sobretudo, atemporal, visto que atualmente uma Comissão da Câmara dos Deputados está debatendo um projeto de lei (PL) que visa proibir a união civil homoafetiva no Brasil. Além disso, os jovens talentos dão um recado sem rodeios e direto: não vamos recuar na vida e nem na dramaturgia, que foi assinada por Alexys Ágosto e Isabel Monteiro, em conjunto de Coletive Avertere.

Outro fator que torna o trabalho muito interessante, é a pluralidade de corpos em cena e a forma como todo o elenco é generoso e se ouve muito bem. Há quem diga que não se pode esperar muito dessa nova geração; a meu ver, isso é desculpa de quem fracassou ao tentar gerar algum tipo de fricção embasado em velhas convicções. Afinal, o novo sempre vem. | Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

“Duas Marias”, por Luiz Vieira

Há quem diga que, no teatro, menos é mais. O espetáculo ‘Duas Marias’ potencializa as atuações contidas – porém potentes – das atrizes Suzana Horácio e Mariana Costa a partir de um texto que embrulha o estômago, gera revolta, busca saídas, propõe soluções, desnuda mistérios. Mas não só. Há muitos acertos no espetáculo, desde o cenário, a iluminação, a sonoplastia e as atuações orgânicas das duas atrizes, até mesmo os caminhos propostos pela dramaturgia, que de forma inusitada faz com que o público revisite algumas certezas.

Ao tratar de uma chacina em uma das regiões do Rio de Janeiro, mais especificamente no Complexo do Salgueiro, o texto transporta o público para uma cena um tanto quanto emblemática: um ente querido é morto durante uma ação policial. E agora? Como continuar uma revolução depois de perder mais um do lado de cá?  Em meio a esse impasse, uma questão latente parece pairar no ar o tempo inteiro: os caminhos que nos trouxeram até aqui, também são os que irão nos levar para um lugar mais seguro? E é exatamente nesses momentos que o teatro acontece e cumpre o seu papel.

A peça foi uma grata surpresa na programação das Satyrianas e um dos trabalhos mais marcantes do festival, tanto pela qualidade do espetáculo, quanto pelo deslocamento do olhar que a dramaturgia de Lou da Silva nos provoca juntamente com a assertiva direção de Fagner Casali. E claro, sobretudo, pela generosidade das atrizes que dividem o palco.| Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

“Uma história para Elise”, por Luiz Vieira

Volta e meia, no meio artístico e fora dele, é muito comum ouvir que a arte imita a vida e que a vida imita a arte, ou vice-versa. O espetáculo ‘Uma História Para Elise’ é um ótimo exemplo para entendermos melhor esse dito popular. A peça, de forma nua e crua, traz à tona as violências sofridas pela população LGBTQIA+ no Brasil, país esse, nós sabemos, que está no topo dos lugares onde mais se mata os membros dessa comunidade no mundo.

A história narra de forma trágica e por vezes cômica, o sumiço de Elise, uma dama da night,  intercalando também por uma perseguição de um oficial de justiça que quer saber todos os detalhes do desaparecimento da tal beldade na boate da Rua XII, mas ignora totalmente as outras três artistas que ali também trabalham e conhecem tão bem Elise, além disso comete uma série de violências, inclusive física, com as três, e é exatamente neste ponto que a peça ganha contornos mais robustos ao jogar luz sobre a desumanização de corpos dissidentes. 

Além de jogar luz sobre uma dura realidade de pessoas trans, travestis e homens gays que trabalham na noite, o espetáculo também abre diálogo para questões extremamente importantes: quais corpos são realmente ouvidos pelo poder judiciário? Quais dores são acolhidas? Quais dores são legitimadas? A quem a população LGBTQIAPN+ pode recorrer em casos de violências físicas e psicológicas? O mesmo Estado que oprime essa população também não está disposto a ouvi-la. Neste sentido,  ‘Uma História Para Elise’ é como um farol, que confunde para se fazer entender, que distrai para se fazer perceber.  Toda boa história gera reflexão. Toda reflexão abre caminhos para um futuro menos insalubre, e o texto do espetáculo cumpre de forma assertiva esse papel. | Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento • @deus.ateu

“Sete.Com”, por Carolina Lira | @caroladelira

A peça mostra um encontro de amigos da faculdade de Artes Cênicas dez anos depois da formatura. Eles se reencontram após o influencer Lau Almeida ganhar um edital de exaltação  à obra de Ariano Suassuna e decidir reunir os amigos da época da faculdade para montar “O casamento suspeitoso”. No primeiro ensaio, o passado vem à tona e revela numerosos conflitos entre os sete participantes envolvidos na montagem.

Cada uma das personagens traz um universo em possíveis desdobramentos dentro de uma carreira nas Artes Cênicas: a área acadêmica, a área do audiovisual, a direção teatral, e até mesmo o abandono da carreira artística e a transição para outra área de trabalho. Essas diferentes trajetórias de cada personagem revelam inseguranças, ciúmes e reflexões acerca do fazer artístico e do que se entende como sucesso na carreira.

A dinâmica de cena entre o elenco é excelente e a dramaturgia se revela leve e divertida, ao mesmo tempo que consegue fazer críticas sobre a classe artística através de comportamentos presentes no jogo entre os personagens. A maneira como cada um dos sete conduz sua carreira e sua vida no período dos dez anos em que ficam sem se reunir enquanto grupo sinaliza a pluralidade de possibilidades para uma pessoa que decide por seguir sendo artista.

Nas interações entre esse grupo bastante heterogêneo que conta com um influencer digital, uma acadêmica professora universitária e até com um ator que participa do elenco de novelas em uma famosa emissora televisiva, são arrancadas gargalhadas do público em situações de tensão entre os participantes da montagem que discutem pelo protagonismo da peça ou pela forma mais indicada de construir uma personagem. As disputas de poder dentro desse pequeno grupo fazem rir e refletir durante toda a apresentação de um jeito deliciosamente despretensioso.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Blue”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

“Blue” é um monólogo que explora a singularidade das histórias pessoais, deixando claro que a individualidade é construída a partir de referências que se dão no coletivo, tornando-se múltiplas, únicas e podendo ser contadas de diversos pontos de vista, dependendo das próprias vivências e leituras delas.

A peça, intitulada “Blue” em referência à baleia, considerada a mais solitária dos mares, aborda a solidão de uma mulher no meio do oceano que chamamos de mundo. Assim como as baleias, seres sociáveis que usam a voz para atrair outros de sua espécie, os seres humanos também compartilham a necessidade de narrar e significar seus próprios acontecimentos. 

A poesia da peça reside na maneira como ela utiliza metáforas como a baleia solitária para expressar a solidão da personagem e, por extensão, a solidão da existência humana. O monólogo toca nos silêncios, ecoando o canto da baleia, e revela a complexa relação entre a necessidade de narrar nossas histórias e o medo de ocupar o espaço e tempo dos outros. 

No decorrer da trama, a atriz explora os silêncios de forma a tocar nossos próprios, entregando uma atuação bastante expressiva e sincera. A repetição do nome da personagem em diferentes momentos da trama revela que cada um também é múltiplo, podendo assumir idiossincrasias diversas ao longo da mesma existência. A  sutileza da peça nos leva a refletir sobre a natureza da individualidade e como nossa própria história é essencial para podermos existir, acessando, assim, o intrínseco da história humana.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Vila Rica ou A História De Um Coração Que Quer Ser Ocupado” , por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

O musical “Vila Rica” é uma obra extremamente necessária por trazer temas relevantes para construir o Brasil que queremos: um país mais justo, levando em conta as diferenças sociais, os privilégios de alguns em detrimento de outros. Nos convida a reflexão de qual lado estamos, deixando claro que fazemos parte da classe trabalhadora e, portanto, da classe explorada pela minoria que detém o capital.

A Cia Quase Poética de Teatro entrega um espetáculo altamente coeso, tanto atores, quanto músicos e dramaturgia compõe a mesma dança, fazendo com que o público cresça à medida em que as personagens constroem narrativas sociais e desmantelam estereótipos arraigados no pensamento coletivo.

A peça se passa numa ocupação e situa-nos sobre a quantidade de pessoas que estão nas ruas, sem direitos básicos à sobrevivência, e a quantidade de prédios abandonados que poderiam ao menos servirem de moradia para estas pessoas. Ao mesmo tempo em que trata das diferentes violências diariamente enfrentada por pessoas vulneráveis economicamente, passando pela violência policial, silenciamento, invisibilidade, preconceito, inversão de valores e falta de políticas públicas que atendam esta população.

Ronaldo é um personagem, interpretado pelo ator Rodrigo Cotrim, que chega na ocupação para realizar o seu sonho de ser cantor. Ele materializa a visão que muitos têm a respeito de valorizar o patrão (aqui leia-se quem explora) e menosprezar ou até culpabilizar a classe explorada. No desenrolar da trama, a comunidade da ocupação Vila Rica vai clareando que Ronaldo (assim como nós) está mais próximo deles do que do patrão. Cobrando um posicionamento dele e nosso, aí temos a arte e sua capacidade de transformar e denunciar.

Também vemos em Vila Rica o poder que a arte tem de ser resistência. “Mais medo do violão do que da arma”, porque enquanto a arma mata a arte salva, resgata, resiste, transborda e escancara as feridas sociais, transformando primeiro por dentro e fazendo com que cada um, independente da sua condição exista, e isso é perigoso para os que não querem perder o poder. Vila Rica é um musical potente e com capacidade transformadora que é própria do fazer artístico. 

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Desterra”, Douglas Ricci | @blogaus

Um clima distópico e uma impactante trilha dão o tom inicial do espetáculo Desterra. Já sabemos que o caos se instaurou naquele universo e que esse será o assunto colocado em pauta no palco. Um mundo onde os governantes armados de seus poderes e megalomania instauram o terror, o medo e a guerra. Qualquer semelhança com inúmeras partes do globo nesse momento, obviamente não é mera coincidência, é evocação.

Do que é capaz uma população polarizada? manipulada? vigiada? Como é que se morre um país? A pergunta vai se fazendo em cena com um texto narrativo e dinâmicas imagens construídas pelos atores ao som de distorcidos beats eletrônicos. Os figurinos e a maquiagem são fundamentais no estabelecimento de outro mundo, futurista (?), futuro retrógrado (?), com suas muitas camadas de formas e cores.

Há um ritmo bastante alucinante na forma como a peça vai se fazendo, uma certa correria, uma ansiedade, que esteticamente dialoga com o tema urgente colocado pela dramaturgia. Acredito apenas que isso interfere de forma um tanto negativa quanto a forma como os atores enunciam essas palavras, através de gritos e rapidez de fala e assim a plateia perde um tanto das palavras que estão sendo colocadas e automaticamente das imagens evocadas por elas.

Curiosamente, me fica uma imagem da peça que é um respiro bem diferente desse frenesi. Um momento em que crianças brincam entre corpos caídos. Essa imagem atravessa séculos de guerras e de humanidade.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Vê, nus parida”, Douglas Ricci | @blogaus

Uma mulher diante da luz. Uma mulher sexy diante da luz. Uma mulher sexy  de shorts jeans curtos, body azul transparente, se movendo com gestos e atitudes felinas, pegando seus óculos escuros Lolita em forma de coração, calçando seu belo par de sapatos de salto alto, bem alto, diante da luz. Ela vive, ela se move, ela é bela e “a gata sabe que ela é bela, que ela entra onde ela quiser”. Ela é amor, ela é luxuria, ela é uma Vênus contemporânea. Ela bebe vinho e chupa pirulitos em forma de coração. Onde ela está? que lugar é esse?

A peça “Vê, nus parida” começa com a instauração dessa atmosfera, o feminino é evocado pela impressionante presença da atriz Camila Soufer, uma espécie de não lugar é colocado ao som de músicas pop. Surge então a figura  de uma mulher coberta com um véu branco e calcinha vermelha, é a deusa que se materializou?

Essa nova figura traz consigo a palavra, e então o discurso da peça é posto através das perguntas direcionadas à plateia. O que é um corpo feminino? O que é ser mulher? Como é estar neste mundo sendo uma mulher? 

Interessantes imagens vão se fazendo da interação entre a deusa materializada e a flexível gata de óculos de Lolita, culminando em um banho dado pela gata com um regador na deusa enquanto essa assume a icônica imagem da deusa Vênus retratada por Botticelli. Então o que era cenografia se transforma em figurino e a deusa sai dando o seu belo ‘close’ de catwalk ao som de Linn da Quebrada. 

Pra finalizar, um audio da deputada federal Erika Hilton, mostrando para a comissão da câmara que quer proibir o casamento gay que “travesti não é bagunça”. Recado muito que bem dado. 

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Narratividades Sonoras”, por Alexandre Gnipper | @alexandregnipper 

“Narratividades Sonoras” é um projeto multimídia que converge as áreas da dramaturgia e da sonoplastia, fomentando o encontro criativo de artistas de diversas áreas e estimulando a composição de narrativas singulares.

Nascido na sala de aula da SP Escola de teatro, a partir do encontro das turmas de sonoplastia e dramaturgia (e das respectives artistes docentes @gylez.me e @camiladamasceno___), o projeto propicia o encontro de artistas, sob uma perspectiva multidisciplinar, promovendo práticas de criação artística e discussões sobre processos criativos a partir das singularidades de cada indivíduo, visando o desenvolvimento da trajetória artística particular de cada subjetividade.\

Na mostra exposta na Galeria Olido, durante as satyrianas, o projeto apresentou trabalhos desenvolvidos durante uma oficina na Casa de Cultura da Vila Guilherme, assim como trabalhos desenvolvidos no encontro inicial na SP Escola de Teatro. Se utilizando das linguagens da performance, da videoarte, do áudio drama, e da poesia estendida, diversos artistas expuseram seus trabalhos num ambiente amistoso e descontraído, criando um espaço de encontro e de troca através da arte.

Promovendo a produção e o pensamento cultural, a partir da troca entre artistas e de suas produções, o projeto acaba sendo um ponto de encontro onde arte e alteridade são indissociáveis.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

Sprints Críticos – Deus Ateu | 13 de outubro, sexta-feira 

“A Escolha de Páris”, por Mariana Ferraz | @marianaferrazmf

O espetáculo “A Escolha de Páris” apresenta, com humor e delicadeza, a história de um homem que deve autorizar-se quanto à sua própria sexualidade diante de uma família conservadora e moralista. Mas não só: é também um postulado de sobrevivência e emancipação quanto a um sistema machista, opressor e homofóbico. E mais: “A Escolha de Páris” é uma peça sobre decisões – e sobre o quão difícil, apesar de imprescindível, é o exercício do livre-arbítrio.

A narrativa é levada à ribalta com um belíssimo projeto de encenação. Os figurinos excêntricos e futuristas compõem com magistralidade as camadas da cena, os caminhos percorridos entre a casa e a empresa da personagem, bem como a as partituras vocais desempenhadas pelo elenco são elementos que contribuem de modo contundente para com o resultado que se presenteia a plateia.

Tratando de temas que eclodem dos grilhões heteronormativos à questão da soropositividade, passando pela mitologia grega e por discussões sobre a solidão inerente aos reconhecimentos de si, “A Escolha de Páris” é uma excelente contribuição da Companhia Queda Livre para com a cena teatral contemporânea. 

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Serial Lover”, por Mariana Ferraz | @marianaferrazmf

Como parte da programação DramaMix, “Serial Lover” é um monólogo desempenhado pela sempre inebriante Fernanda D’Umbra, que encarna uma mulher que está prestes a ser fuzilada. O motivo pelo qual se cumprirá a pena? Ter amado trinta e seis homens heterossexuais e cisgênero.

Exercendo a regalia de degustar de sua última refeição – uma macarronada do tipo pene, com um desagradável molho de tomate –, a personagem lê uma espécie de declaração confessional em que trata das razões pelas quais teria, ao longo de sua vida, sucumbido à nefasta, torturante e sofredora sina de apaixonar-se de tal forma. Amante em série, a voz proferida por D’Umbra discorre sobre o amor, sobre o abandono, bem como sobre os tantos e tão sórdidos lugares e signos comumente outorgados às mulheres numa operação relacional.

Trajando um macacão estilo pelúcia na cor magenta, Fernanda D’Umbra conduz o público do riso à comoção, da ironia ao entranhamento, equilibrando-se por este tênue fio que segrega a criação ficcional da identificação pelo testemunho. Assim sendo, é lícito afirmar que “Serial Lover” é um produto cênico de excelência: trata-se de uma dramaturgia consistente exercida por uma atriz excepcional. É, portanto, um projeto a ser visto e aclamado.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Ensaio sobre o Ovo e a Fome”, por Beatriz Porto | @beatrizpfg

“Ensaio sobre o ovo e a fome” é uma peça ainda em processo de criação, como o nome diz, sobre a fome. O Coletivo Sem Nome apresenta, ao longo do ensaio, os materiais que inspiram sua pesquisa: “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus, “O ovo e a galinha” e “Crianças chatas” de Clarice Lispector e o poema “O bicho”, de Manuel Bandeira. Ao longo da cena, o grupo vai tentando dar forma a este tema tão crítico quanto incontornável.

Como um processo de criação aberto, o trabalho é bonito naquilo que demonstra a vontade de pesquisar e de conhecer de um grupo. Abrir uma pesquisa em andamento significa expor um material com suas fragilidades e é de muito interesse para um trabalho de formação de público, pois possibilita ao espectador ter maior acesso às formas de produzir teatro e não só ao seu formato em temporada, que muitas vezes (não sempre) significa já uma forma sem ou com pouco espaço de transformação. Dito isso, uma crítica a um trabalho dessa natureza se propõe também como um diálogo processual, que visa a construir junto.

A peça-ensaio apresentada aponta um caminho forte e poucas vezes traçado quando traz para o palco uma cena escrita pelo Chat GPT. Esse procedimento levanta contradições inerentes ao tema e merece radicalização, pois aponta para o fato de que a excelência de Inteligência Artificial a que temos acesso hoje é, assim como a fome, produto direto do processo extrativista do capital. É interessante notar, por exemplo, como a cena entregue pelo chat fica justamente contornando o incontornável ao nunca tocar no cerne da questão: quantas vezes seria necessário pedir para o chat reescrever a cena até que ela mencionasse que a fome é resultado de um processo de produção de desigualdades do qual a outra ponta é justamente a sua própria tecnologia avançada? Talvez infinitas – ou, pior: talvez em pouco tempo, a máquina já saiba cooptar o tema, contornando inteligente e artificialmente a discussão de forma a nunca se voltar contra a própria existência.

Outro momento que apresenta ponto de entrada rico em contradições é a cena com trechos do diário de Carolina Maria de Jesus. As situações de pessoas procurando ossos no lixo do frigorífico e dizendo que procuram, na verdade, comida para os cachorros, bem como a decisão dos frigoríficos de não jogar mais o lixo ali para que as pessoas não venham, atacam o problema de forma muito material e podem evidenciar o funcionamento de estruturas: por que o dono do frigorífico pode decidir que a pessoa em situação de fome não poderá comer o resto que encontra no lixo?

No que diz respeito à forma do trabalho apresentado, penso que seja sempre importante se perguntar: essa forma está alinhada ao conteúdo que quero abordar? A repetição até o esvaziamento do gesto ou da palavra diz o quê sobre a fome? Busca esvaziar o quê no tema? Ele já está gasto, muito falado, já perdeu o sentido? Em certos momentos da peça, esses procedimentos produzem um mural paisagístico sobre a situação da fome em que parece que cabe ao artista apenas retratar a impossibilidade de mudança. É o caso, por exemplo, da cena em que dois atores comem fast-food enquanto vemos a famosa imagem de Tuca Vieira do prédio do Morumbi que divide muro com a favela de Paraisópolis, ou quando vemos um retrato animalizado de uma pessoa comendo do lixo a partir do poema de Manuel Bandeira. Estes materiais ganham contorno se enxergados em suas contradições: a desigualdade da foto é um retrato, não uma causa, assim como um ser humano não é passível de ser reduzido à violência que sofre.

A peça em processo ainda poderia ser material de muita discussão, o que é animador para qualquer trabalho criativo em andamento. A pesquisa do Coletivo Sem Nome gera muito interesse em sua continuidade, tanto por sua temática e diversidade de referencial poético como pelo seu caráter de pesquisa coletiva profícua, capaz de levantar procedimentos em abundância e que sem dúvida merecem aprofundamento do grupo. Vida longa às pesquisas coletivas!

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“A Odisseia em cantata”, por Beatriz Porto | @beatrizpfg

“A Odisseia em cantata” traz o prazer de contar e ouvir uma boa história com alegria e simplicidade no narrar. Com apenas um leme no centro do espaço, vamos navegando junto com Ulisses na sua quase interminável e impossível volta para casa depois da guerra de Troia.

Os episódios da Odisseia são contados de forma muito divertida e pinçam nuances que não são sempre trazidas sobre o clássico grego. O grupo parece ter um olhar despretensioso para o trabalho, o que traz achados incríveis como uma ama de Penélope à la ama de Julieta que desloca o centro da narrativa clássica, ou o pretendente compositor que nunca encontra uma rima com o nome da rainha com quem quer se casar. A música, inclusive, dá o tom da narrativa o tempo inteiro, sendo capaz de contar episódios de forma esperta e lúdica e de amalgamar um trio de atores-cantadores que se relacionam com leveza entre si e o material. Na contação de história, tudo é uma coisa e depois vira outra: assim a música é elemento central também na singela transformação de objetos que vê em um ukulele o olho de um ciclope ou um arco encantado.

No que diz respeito à história contada, o grupo salienta diversas pequenas informações que evidenciam a posição coletiva perante a obra de Homero: há uma menção ao fato da Grécia estar voltando vitoriosa de uma guerra que dilacerou Troia, dos marujos irem diminuindo em número ao longo da travessia e da percepção do grupo de que há tantos pretendentes para Penélope porque seria inconcebível para a sociedade da época que uma mulher governasse sozinha. Digo isso porque parece que o grupo abre muito mais possibilidades de leitura da história ao longo da narrativa do que quando amarra seu significado como uma história sobre a coragem de Ulisses ao enfrentar seus medos. As histórias, quando bem contadas como nesse caso, abrem mundos de interpretação para os públicos de todas as idades e nem sempre precisam de uma amarração que nos convença da sua importância: a própria maneira de fazer já fez esse trabalho.

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“Pequenas Coisas Espetaculares”, por Beatriz Porto | @beatrizpfg

Em “Pequenas coisas espetaculares”, Tiago Dantas mescla números de malabarismo e mágica com o carisma sempre emocionante do palhaço, essa figura que nos faz rir onde parecia que não dava e estranhamente comove pela forma inusitada de olhar o mundo. Em se falando de um espetáculo pensado para a rua, lugar de passagem, esse olhar do palhaço é sintético quando ele chama o público dizendo “fica, a peça é ruim, mas é curta”, ou “pode ficar por dó mesmo”.  Essas pequenas frases fazem rir pela sagacidade do palhaço em trazer pontos sensíveis da vida do artista de forma desconstrangida. Com delicadeza e muito jogo de cintura, o Palhaço Purunga foi lidando com as situações que se apresentaram na interação com o público que assistia e o público passante, e pontuava, de forma muito singela, a percepção de que a arte é um caminho de mão dupla entre quem faz e quem assiste.

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“Duas irmãs”, por Carolina Lira | @caroladelira

Com dramaturgia de Marco Fábio de Faria e direção de Edu Chagas, “Duas irmãs” conta a história das irmãs Nátila e Sergipa, que remontam recordações do passado a partir da lembrança de um homem que morreu afogado e que as duas conheciam. Em seus diálogos, nesse exercício de trazer memórias à tona  acabam refletindo sobre a vida. O vento e a fome, elementos desvelados no texto, são os fios condutores dessas rememorações das personagens.

Essa leitura dramática traz uma inesperada comicidade advinda da parceria em cena das atrizes que dão vida às irmãs. Marina Bragion e Tammy Almeida constroem essas irmãs de idade avançada, com pantufas e leveza. Uma cenografia enxuta foi construída para criar o ambiente onde as personagens estão inseridas: cadeiras com mantas, fazendo as vezes de poltronas, uma mesa com um cesto de tomate e outros utensílios de cozinha. 

Os pontos de tensão nos diálogos das duas em que se esperam confissões sobre as histórias do passado de ambas envolvendo o homem que morreu afogado chegam acompanhados de alívios cômicos, seja no gestual ou na maneira de usar a voz. Marina e Tammy se mostram confortáveis para brincar no palco e com a plateia, ao cortar tomates ou temperá-los com sal, ao proferir orações ou impropérios. as irmãs Nátila e Sergipa nos conduzem sutilmente a pensar sobres as fomes do corpo e do coração.

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“A dança das Sete Marias”, por Carolina Lira | @caroladelira 

São três histórias, três mulheres, três marias que alinhavam a costura dessa peça. Maria da Conceição, Maria das Dores e Maria Mulambo atravessadas pelas mais diversas formas de violência de uma sociedade patriarcal. Através de múltiplas referências religiosas e arquetípicas, as Marias com suas sujeições, lutas, dramas e dores nos conduzem por histórias dentro e fora do tempo.

Frente a frente com as narrativas das marias que são desacreditadas, violadas e mortas mesmo quando há coragem para denunciar um crime, enfrentar um homem agressor, resistir em face da violência patriarcal que se apresenta cotidianamente, a plateia se depara com histórias de mulheres que se atrevem a desafiar opressões. O elenco se mostra unido e apresenta trabalho de corpo cuidadosamente construído.

A peça escancara violências e vai perpassando por temas capazes de gerar inúmeros gatilhos, desde um estupro coletivo até o feminicídio. Ao mesmo tempo em que é possível imaginar que as histórias contadas sobre as marias da peça já aconteceram em um passado não tão distante, é aterrorizante saber que durante o decurso da peça feminicídios podem estar ocorrendo. É de suma importância que se traga para a cena a denúncia de violências, mesmo que de forma crua, reafirmando o teatro como instrumento de reflexão e transformação.  

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“Verdades e Inverdades”, por Douglas Ricci | @blogaus

A ideia por trás do texto Verdades e Inverdades, lido no festival Satyrianas pela Oba companhia de teatro nos evoca o encontro que muitas vezes temos com nós mesmo ao longo da vida. Com um monólogo construído em diálogos, o texto nos coloca os aspectos de oposição e complementaridade que são motriz da vida humana, como o masculino e o feminino, não como gênero mas como forças energéticas que cada um carrega em si.

Repleto de referências que vão de Machado de Assis à Sartre, passando por uma nítida alegoria a Esperando Godot de Samuel Beckett, sendo Godot o ônibus que não vem, o texto reflete a sobre a completa falta de rumo que a vida contemporânea nos propõe, nos escravizando com a necessidade de compromissos inúteis e imperdíveis.

Fiquei sentindo falta de um ponto de virada da dramaturgia, algo que apontasse um desdobramento para esses dois personagens que são um. Fico curioso para ver se esse apontamento vem com a encenação do trabalho.

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“Ei, maninha”, por Douglas Ricci | @blogaus

Há assuntos tão importantes e urgentes a serem ditos que a forma como eles se apresentam não importam muito, e sim a intensidade do berro com que são enunciados. É o caso da peça Ei, Maninha do Grupo SER de teatro apresentada no festival Satyrianas. E o berro aqui clama pelo lugar de reconhecimento da mulher negra como rainha.

Quais corpos podem circular tranquilamente pela cidade? Quais corpos não são estigmatizados? Quais não são alvos de fetiche? Não o da mulher negra. Não o da mulher negra, pobre e subalternizada.

Na cena, onde vemos apenas uma mulher negra, a atriz, é evocada às memórias dos ancestrais, e a pergunta que ela faz sobre a herança ancestral que ela merecia herdar, sua coroa de rainha. A peça dá o seu importante recado no formato em que ela ora se apresenta ao público, no entanto, acredito que poderia ganhar muito mais força se o importante discurso fosse ancorado nos recursos teatrais que podem ser explorados a partir dele. Se utilizar de momentos, climas, recortes de imagens, luz, atmosferas, elementos teatrais que ainda não se apresentam bem resolvidos na proposta de encenação.

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“Exausta, em cena”, por Douglas Ricci | @blogaus

Andy Warhol disse certa vez que no futuro todos teriam seus 15 minutos de fama. Teria ele vislumbrado nosso mundo do século 21 mergulhado nas redes sociais com suas demandas urgentes de exibição e sede de aprovação? Além de bem sucedidos dentro da régua que mede nosso valor no mundo capitalista, também temos que entregar uma performance alucinante nas redes sociais. E até mais, ser bem sucedido é entregar essa performance. De que vale seu trabalho de arte se ninguém está comentando ou compartilhando ele através dessas redes? Os 15 minutos de Warhol viraram 15 segundos de stories que devem ser constantemente alimentados para não cair no vale do ostracismo.

A verdade é que estamos todos exaustos, eu, você que lê, as pessoas com quem convivemos e a atriz do espetáculo Exausta, em cena, apresentado no Festival Satyrianas. Cansados dessa demanda produtiva que nos vem sendo imposta pela forma de vida que nos é oferecida neste momento da história, com nossas horas de lazer transformadas em consumo produtivo alimentando a infinita barra de rolamento das redes sociais.

A atriz e dramaturga da peça Caroline Romano compartilha conosco suas angústias com relação a essa temática através do colapso que a personagem apresenta, quando forçando seus limites corporais e psíquicos chegam a um estado de paralisação total. Ela chegou lá, atingiu os objetivos de sucesso que ela achava que eram dela, e uma vez lá viu que o que havia era vazio. Ouro de tolo.

A personagem é uma artista visual, e a peça tem um acabamento interessante, com o espaço cênico e figurino todo branco como telas vazias prontas a serem preenchidas e pinceladas de cores aparecem em alguns objetos inseridos ao longo da narrativa. Essa escolha estética dialoga de forma bastante harmônica com a temática do cansaço de nossos tempos.

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“Night Fever”, Douglas Ricci | @blogaus

Lembra do filme de 1977, “Os Embalos de sábado à noite”? Aquele em que o John Travolta é um jovem que frequenta uma discoteca despreocupadamente? Então, esse filme serve de disparador de memória para o ator Celso Cruz mergulhar nos saudosos anos de sua infância e adolescência. A escola, a vizinhança do prédio, a pizzaria da esquina, os passeios com os pais e os amiguinhos serão imagens evocadas ao longo da peça. 

Alguém fez um grupão de whatsapp com o título Só a diretoria para marcar uma reunião com os sobreviventes desses tempos, e são essas figuras que vão brotar diante do público, através do corpo de Celso, em uma grande mesa de pizzaria onde a reunião se deu. O que se tornaram aqueles tantos que eram tão importantes e que a tantos anos não se ouvia falar? Como você engordou. Como você envelheceu. O tempo foi muito generoso contigo. Frases que vão brotando das conversas em paralelo nas rodinhas que se formavam. Aos poucos vão se revelando os caráteres, as verdades, as meia verdades e mentiras. Tem sempre um desconforto nessas ocasiões onde ficam evidentes as diferenças dos posicionamentos diante da vida. O estranhamento entre pessoas que pareciam tão próximas quando a vida ainda estava apenas começando.

A encenação é simples: um ator, blue jeans, camiseta branca, tênis vermelho, blusa de frio azul, uma cadeira verde e a atuação, mas dá conta de dar seu recado, abordar seus assuntos de forma satisfatória. No entanto, sinto falta de uma interação com a plateia, de uma quebra da quarta parede em alguns momentos, uma vez que ele está ali contando sua experiência para nós, público. Acredito que a cena se potencializa a partir dessa interação.

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“Uma Simples Cidadã”, por Alexandre Gnipper | @alexandregnipper 

Uma simples cidadã configura um jogo de simulação da relação arquetípica de coerção que o estado exerce sobre os indivíduos, fazendo ver uma dinâmica perversa de dominação social onde as vítimas acreditam serem os responsáveis por seu insucesso.

De modo informal o narrador inicia um diálogo com a plateia. Entre assuntos práticos sobre a encenação ele nos informa que irá contar uma história de Franz Kafka, e que o assunto é a lei. Simulando a veracidade da simulação (assim como o fazem os aparatos de dominação social) dois atores fingem ser participantes da plateia. Simples pessoas jogando nos papéis arquetípicos da relação de coerção que o estado exerce sobre nós.

Um texto objetivo e eficiente nos conduz de maneira envolvente por essa história que é de conhecimento de todos, mas que contada ali de maneira simbólica e condensada, atinge um didatismo poético que desvela uma relação de abuso fundamental, mas que se encontra naturalizada pelo modus operandi do social e por uma ideologia da dominação que acaba por fazer crer que as vítimas são os culpados pelo fracasso de suas empreitadas.

Tecendo um jogo complexo da relação de aspectos existenciais e políticos, o resultado que temos é a expressão de uma psique subjugada por mecanismos autoritários de manutenção do poder, que constroem uma realidade opressiva a qual somos obrigados a nos submeter.

A limpeza de cena e a eficiência do texto nos auxiliam a focar nosso olhar naquilo que há de fundamental nesse jogo de ser e agir sob a tutela de um estado, configurando a encenação em uma fábula social das desventuras de se existir em um mundo cujos moldes nos são dados desde antes do nosso nascimento.

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“Bagã: travessias cênicas”, por Alexandre Gnipper | @alexandregnipper 

Bagã acaba nos contando a história de superação de uma decepção amorosa, de uma palhacinha pra lá de cativante, mas nos entrega muito mais do que isso. A história ali é um subterfúgio para nos fazer submergir no universo lúdico de uma personagem cômica, que nos entrega um riso leve e sincero, cativados pela doçura e pela malícia pueril do que nos é apresentado em cena.

O corpo exagerado, o gesto desajeitado, maneiras inusitadas e inventivas de se cumprir uma mesma tarefa, a burla de si mesmo, o deboche da plateia. Um amálgama de fórmulas prontas que encontram seu brilho na forma magistral e cativante com que são executadas.

Com uma estrutura narrativa pautada pelo gestual se explora uma coleção de contrastes que expressam a complexidade da condição humana, mas que também defende a possibilidade de a sublimação e a superação serem processos leves, quando encarados com bom humor e a partir da capacidade de rir de si mesmo.

Exagerado e delicado. Inteligente e sensível. Doce e inusitado. Um espetáculo gracioso onde o riso é leve e espontâneo. Uma palhacinha esperta e cativante faz da doçura e da malícia instrumentos de sedução e de transmissão de levezas, contagiando o público com a leveza e alegria que ansiamos em nossas vidas.

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“Vamos ver as Tartarugas”, por Alexandre Gnipper | @alexandregnipper 

“Vamos ver as tartarugas” configura um quadro poético que evoca memórias da infância na elaboração de uma experiência de trauma, contando uma história de perda da inocência a partir do ponto de vista de dois irmãos. 

A mãe, reduta de alegrias e segurança, embala placidamente uma perspectiva de existência que não pode ser sustentada. Um dia eles eram felizes e foram ver as tartarugas nascendo na praia. O tempo passa e a vida adulta guarda labirintos que não podem ser acessados de dentro da redoma de cristal na qual repousa a inocência dos irmãos. Uma mãe em fuga exerce sua função na chave do desespero, e acaba por evocar a lembrança do dia em que foram ver as tartarugas nascendo como ferramenta para o rapto dos filhos.

Quando se dão conta que foram enganados pela própria mãe, o véu da inocência se quebra, e o peso é severo demais para os ombros dos irmãos. Salvos pelo pai do gesto desesperado da mãe, na volta pra casa eles passam por lugares que guardam memórias desse momento em que acreditavam viver em um mundo seguro. Agora esses lugares vão se tingindo por uma outra tonalidade, que transborda da imagem inicial manchada do dia em que foram ver as tartarugas nascendo, se espalhando pelo caminho que teriam a frente por percorrer, agora enfrentando essa experiência do mundo estar fora do eixo.

Ali o elemento épico da narratividade acaba sendo utilizado como um mecanismo de defesa do ego, se distanciando para poder contar, contando para elaborar a experiência. Se a narração submerge o público na história, ela também distancia o narrador da experiência, como estratégia de preservação da subjetividade fraturada das personagens, ao mesmo tempo que submerge o público nessa experiência de perda da inocência na infância que, de modos diversos, todos compartilhamos em comum.

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“A última geração”, por Luiz Vieira | @luizvieira.art

Impossível ver o espetáculo ‘A Última Geração’ e não fazer uma conexão direta com o que está acontecendo nos territórios de Israel e Palestina em 2023. A peça, que é uma livre adaptação da obra “Morro Como País”, de Dimítris Dimitriádis, refaz os passos de um país em ruínas num período de pós-guerra e busca entender os motivos pelos quais há legitimação na barbárie. O elenco, ávido por contar essa história, transforma-se num coro eloquente e se potencializa com a direção atenta de Diego Ribeiro. Além disso, há destaque também para os figurinos, as maquiagens, a luz, a sonoplastia, o preenchimento do espaço; percebe-se a seriedade do trabalho em cada detalhe.

Em meio ao turbilhão de emoções que se é possível sentir ao ver a peça, fica uma certeza: algumas histórias precisam ser contadas mais de uma vez para que elas não se repitam. Parafraseando Marina Colasanti: “A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia, de guerra, dos números, da longa duração. […]”. 

Ao final do espetáculo, emocionada e aos prantos, a atriz Alana Carrer agradece a presença do público e reverência a fênix, Zé Celso, num momento lindo, singelo e que marca, mais uma vez, a importância do festival para a cidade de São Paulo, para o país e para a manutenção da memória.

Viva as Satyrianas! Viva, Zé! Viva a potência criativa dessa nova geração! Viva! Viva a memória, que ela permaneça sempre viva! Que a profecia se cumpra. Aos que vieram antes, aos que aqui estão, aos que se foram e aos que ainda não sabem que chegarão.

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“Amor para Obá”, por Luiz Vieira | @luizvieira.art

De onde é seu congá? Quem é seu orixá? ‘Amor Para Obá’, do Grupo O Fi’los, celebra entidades de matriz africana num espetáculo divertido que mescla comédia e drama a partir de uma dramaturgia inspirada nas histórias dos orixás.

Com um elenco afinado, o espetáculo traz como trilha sonora músicas nordestinas e coreografias do folclore brasileiro. O destaque fica para o texto de Alexandre Battel, que consegue construir uma história divertida e, ao mesmo tempo, didática sobre a origem dos orixás. Infelizmente, ainda vivemos em um país em que a desinformação gera muito preconceito contra religiões de matriz africana, e o espetáculo se mostra extremamente necessário dentro da programação das Satyrianas para ir na contramão das estatísticas.

Para um panorama mais recente, uma pesquisa da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras, em 2022, mostrou que nos últimos dois anos crimes de intolerância religiosa cresceram 45% no Brasil e os principais alvos são os cultos de matriz africana. A pesquisa ouviu representantes de 255 terreiros de todo o país, e quase metade diz ter sofrido mais de cinco ataques no período.

Ao final do espetáculo, Battel fala sobre a importância da resistência do teatro e do público que também se disponibiliza para ocupar esses espaços. 

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“Cabaré dos Despejados”, por Luiz Vieira | @luizvieira.art

Mais uma grata surpresa dentro do  festival, ‘Cabaré dos Despejados’ consegue de forma despretensiosa prender a atenção do público em um espaço que, muita das vezes, é um desafio conseguir, como foi o caso da apresentação do Grupo Despejados no bar dos Parlapatões. 

Com uma banda tocando ao vivo, o pocket show é  intercalado por apresentações de uma trupe de palhaços que fazem números, lamentam suas dores e reivindicam a atenção do público para prestarem atenção em suas palhaçadas. Os sagazes palhaços conseguem, em poucos minutos, dar um up no espaço e fazer jus a sua infraestrutura: um palco vazio precisa ser ocupado por artistas – ora! 

Como diz Arnaldo Antunes, a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte! E neste sentido, o Grupo Despejados manja bem como fazer uma boa “orgia”, na mesma pegada que o Zé gostava! 

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“Complexo Metade Cheio”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

O eco do estribilho, “isso não é certo é de cortar o coração”, ressoa entre os tambores que acompanham a experiência sensorial que é “Complexo Metade Cheio”. Esta adaptação da obra “A Gota D’água” de Chico Buarque e Paulo Pontes mergulha não apenas na história de seus personagens, mas também nas questões sociais que permanecem profundamente entranhadas em nossa sociedade, como o trabalho do cuidado, a sobrecarga das mulheres e a vulnerabilidade que isso gera

.A singularidade desta peça vai além das habilidades excepcionais do elenco e da envolvente disposição do palco em formato de teatro de arena. Ela nos leva a um mergulho na realidade de seus personagens de uma maneira que nos força a questionar nosso próprio papel na narrativa. 

A peça começa com uma cena em que os atores amassam a massa de um pão, um forno, preparando-o para ser degustado. Em breve, todos na plateia também partilham do mesmo pão, aquele que a protagonista envenena a si mesma e a seus dois filhos. Todos nós nos tornamos cúmplices da tragédia iminente, e a reflexão começa.

Em meio a esse “Complexo Metade Cheio” em que vivemos, a metade vazia, muitas vezes invisível, não pode mais ser negligenciada. A atriz Aline Fauth em uma encenação visceral mostra com o corpo todo uma mulher que foi abandonada pelo marido com os dois filhos do casal, ele prefere tentar a fama e se casar com uma mulher mais nova e rica, assim como a peça referência citada acima.

A história da protagonista reflete a realidade de inúmeras mulheres que, diariamente, se veem sobrecarregadas pela rotina de trabalho e pelo fardo de cuidar de seus filhos sozinhas. No Brasil, mais da metade dos lares são liderados por mulheres, que enfrentam a luta constante de equilibrar o trabalho, a culpa e o medo, tudo isso sem apoio do pai, sequer do Estado.

A personagem, retratada com maestria, está enfraquecida, sem apoio e solitária. “Complexo Metade Cheio” nos lembra que, enquanto celebramos as conquistas da vida, não podemos esquecer daquelas que carregam o peso do mundo nas costas, muitas vezes sem acolhimento e recursos.

Esta peça lança luz sobre a metade vazia, oferecendo uma oportunidade para reflexão e, esperançosamente, para uma mudança real. Assim, saímos do teatro não apenas comovidos pela atuação brilhante, mas também com uma percepção mais profunda de um problema social que precisa ser enfrentado e resolvido.

Em última análise, “Complexo Metade Cheio” é uma obra que convida-nos a ser mais conscientes e compassivos em relação ao trabalho do cuidado e à vida das mulheres que o sustentam, “qualquer desatenção pode ser a gota d’água”.

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“Extraterrestre”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

“Extraterrestre” se dispõe a tratar da questão de pessoas vivendo com HIV atualmente, o que antes era tabu e sinônimo de morte, hoje, apesar dos antirretrovirais, continuam sendo tabu e sinônimo de morte. As medicações atuais proporcionam qualidade de vida, a não transmissão do vírus para outros e, no entanto, o que mata as pessoas vivendo com HIV?

A peça explora que a morte vem pelo silêncio e preconceito. Apresenta situações vividas por Loretta, uma mulher soropositiva há cinco ano. Revelar o próprio diagnóstico nem sempre é fácil, ainda há muita desinformação e pouco se fala sobre, no imaginário popular ainda reside o estereótipo de pessoas que morreram após contrair o vírus e desenvolver AIDS. Neste sentido, a peça é socialmente relevante.     

A personagem sente-se uma extraterrestre, alguém diferente do resto da humanidade, tem um segredo que não pode ser compartilhado por causar medo nas pessoas, revolta e outras manifestações de discriminação e preconceito. Ela diz ser uma extraterrestre, um tipo de brincadeira. É interessante destacar aqui que esta brincadeira de Loretta é também um silenciamento. 

“Extraterrestre” é um recorte dos inúmeros enfrentamentos que pessoas vivendo com HIV tem de lidar, aqui ressalto que há também um recorte sócioeconômicos, de classe, gênero e raça que foi pouco explorado.

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“Diaspóricas – O Show”, por Alexandre Gnipper | @alexandregnipper

Quatro mulheres negras, na busca da ancestralidade que compartilham em comum, se encontram em um resgate histórico atravessado por suas trajetórias, fazendo da música um instrumento de união daquilo que um dia foi disperso no tempo e no espaço.

Apresentando canções para abraçar e aquecer corações a música ali se configura como ferramenta de diálogo entre almas, atravessando a profundidade de cada ser é possível transcender a fronteira dos corpos, ressignificando relações historicamente forjadas para sublimar em poesia o passado manchado de sangue.

Desse encontro resulta uma musicalidade latente e pulsante em um show cheio de vida e poesia. Fortalecidas de Oyá e Xangô elas se transfiguram em guerreiras de agora, de suas próprias histórias e trajetórias, em um tributo à história de todo um povo, resgatando lembranças como forma de luta, fazendo da música reza e da reza música, atuam como vetores de transformação poética para que as coisas possam retomar a seu devido lugar de direito, até que enfim se revele que a música brasileira é uma mulher negra.

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“Bereu”, por Márcio Tito | @marciotitop 

O acerto da cenotecnia condensa todas as qualidades da obra em uma só paisagem não somente íntima, mas também pública e social. Mulheres e grades se anulam conforme histórias e narrativas surgem sempre mais viscerais, porém, ainda assim, a delicadeza desenhada pelos pés femininos de mães, irmãs, amigas, filhas e maridas ou esposas não deixa de participar do enredo. E que falta faz um mundo menos desigual. 

Quando vozes e planos param sempre no ouvido de alguém cuja crença já se foi, aí não nos resta mais nada. Sonhar, mas não ter a quem dizer o sonho. Amar, mas desencontrar qualquer corpo que possa repousar o nosso carinho. Tantas lutas. E tantas lutas que, no fundo e no mundo, são a mesma. Homens elegendo pontos de apoio para as suas artes criminais, e mulheres que sobreviveram da certeza de que com elas seria sempre diferente. Tudo na vida do pobre, pela falta de opções, porque o acesso abre mundos e fecha vias, muitas vezes se repete. É trauma. É cena em retrospecto. 

Mas o teatro e a sua capacidade de nitidez operam uma profunda revisão porque a poética surgida, no corpo do ótimo e super equilibrado elenco, mesmo quando dentro das histórias já sabidas, faz ressoar conosco um sentimento de profunda renovação. Bereu, ainda que cheio de sombras e dores e fantasmas, é parte da alma clara do Brasil. Um sonho resistente. Um átimo de fé contra as obviedades do real. Com aplausos para a encenação perfeita e capturada pelo melhor ângulo do bom gosto (mesmo quando perante tão duras e miseráveis imagens e realidades).

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“Platitudes”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Dois enormes talentos reunidos em cena: A capacidade cômica-interpretativa textual do doutor, as nuances hilárias e expositivas de profunda inteligência do intérprete. 

Melgaço, o ator em questão, parece ter nascido para inventar o teatro inventado por Zzzlot – e há nisso – de modo selvagem, num vocabulário leigo – algum tipo de transferência? Penso que sim, mas também penso que não. O que importa, na tábula do jogo proposto, de certo, desenha-se na introdução acima.

Errado e certo, certo e errado em uma só direção. 

Duplipensar a via do susto e a zona do sobressalto. Duplipensar o pau no cu sem aviso (sua dor, seu prazer, seu consolo e o tato). E perante uma obra com este modelo de tônica, na hora do texto, na hora da crítica, como constranger-se e deliberar uma análise prática? Zzzlot no convida aos berros e aos aplausos com as solas dos pés. É um contrato entre a graça e o arrepio. Algo perto do climão e abaixo da razão total. Uma peça-ensaio, uma palestra-performativa, uma sessão tempestuosa e feita de muitas e loucas emoções. 

Justifica-se em Platitudes um longo desejo por refletirmos acerca de coisas outrora somente desenhadas nas paredes de ar do pensamento. Vulgaridades fundamentais. Contratos invisíveis. Corações procurando pelo real – e uma gente mais do que maluca fechando salas, reunindo desconhecidos e desconhecidas e dizendo textos que pensam a solidão deste nosso corpo cujos pêlos nunca superam os odores. 

O teatro que se vê em Platitudes, por originalidade, qualidade e ponto-cego, é um dos teatros que podem vir a reformar o olhar da cultura acerca de si. E ficamos todos curiosos e curiosas por conhecermos também quais estratégias farão esta arte ganhar públicos, palcos, viagens e temporadas.

Uma das linguagens mais singulares e poéticas do teatro brasileiro.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Consuelo e os Patada Picante”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Um permanente sentimento de interrogação e dignidade, revelando o tempo-espaço de uma identidade perdida e resistente entre boleros e violões, faz com que a cena performativa, cigana e ancestral escrita por Simone Cardoso nos inspire sentimentos contraditórios acerca dos amores, dos abandonos e dos encontros e desencontros encadeados ao longo de romances, canções, personagens, memórias e variadas outras estruturas simbólicas. Sendo assim, e mantendo as veias sempre mais abertas e colocando em jogo um coração exausto por repetidas vezes perder-se, dar-se e cantar ao encantar-se, Eloá Pimenta, com impressionante magia, valoriza soslaios, sussurros e pequenas (ou apenas delicadas) emoções.

O enredo fica por conta dos procedimentos de aproximação entre a plateia e a performer – e todo este contexto afetivo, criando instantânea cumplicidade transmitida pelo olhar e pelos valores contracenados, sem esforço, elucida também uma sinopse atenta aos sinais do feminino e, como nunca deixa de ser, à respeito das tão cotidianas quanto históricas opressões patriarcais. Para além de uma grande artista, Eloá deixa conosco um sentimento que não se deixa vencer pelo real. É sonho, é vida-delírio, paixão-confissão. 

Um importante gesto internacionalizante e cultural, e uma das mais bem trazidas aproximações entre a performance e o público espontâneo. Certamente uma obra cujo entretenimento e a potência poética podem e devem realizar viagens sempre mais profundas e sempre iluminadas por presenças e olhares das mais variadas estaturas e qualidades.

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Sprints Críticos – Deus Ateu | 14 de Outubro – Sábado

“Frases na porta de Banheiro”, por Carolina Lira | @caroladelira 

O texto de Nina Nóbile carrega com ele uma densidade sufocante. Um tema áspero, uma atriz em cena, uma leitura encenada com poucos elementos dispostos em cena e muita força. Impossível não se confrontar com um nó na garganta e embrulho no estômago ao se encarar um tema como esse: estupro infantil.

A pungente atuação de Ana Clara Fisher traz consigo as vozes silenciadas de muitas mulheres, que mesmo sendo vítimas desse crime, por diversas vezes ainda recebem uma dupla culpabilização. As situações narradas são terríveis e causam asco. As manchetes de jornais que são projetadas em cena abordando casos reais de estupros infantis não são poucas. A atmosfera criada com a atuação da atriz somada à elas contribui para a ampliação do terror sobre a temática.

Em alguns momentos, as frases de banheiro soam engraçadas e fazem um contraponto diante de tanto horror. A personagem menciona que faz uma coleção delas e que as melhores frases irão a acompanhar e guiar seu caminho, assim como provavelmente o lugar profundo que esse tema e essa peça toca dentro de cada mulher vai continuará a acompanhá-las durante muito tempo.

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“Perché Chico”, por Carolina Lira | @caroladelira

O elenco se propõe a fazer uma investigação em cena sobre as inúmeras questões e atravessamentos que atingem seus corpos. Um baile às cegas compõe a apresentação. Nesse contexto, cada atuante congela em uma pose que depois sofre modificações, deixando um rastro de pistas a respeito dos questionamentos sobre adequação de comportamentos e jeitos de corpo impostos socialmente e possíveis consequências para quem ousa não seguir a cartilha das regras sociais impostas.

Imagens cênicas interessantes são formadas a partir de poucos elementos presentes na cena. Um plástico grande está envolvendo todo  elenco quando o público adentra no espaço, sugerindo o pertencimento daquele grupo em uma mesma bolha de outsiders. Um guarda-chuva é utilizado de forma inteligente e versátil e ajuda a compor e criar múltiplas ambiências em micro cenas dentro de uma mesma cena. Espelhos e panos coloridos conduzem o público por narrativas que sugerem opressões e silenciamentos.

Com orientação de Edu Chagas, o grupo se coloca em cena de forma desenvolta e provoca quem está assistindo de forma direta. Em uma das cenas mais fortes, uma das atrizes luta para se desvencilhar das agressões de todo o restante do elenco, é  tirada de cena e continua berrando e suplicando em alto e bom som. O elenco volta perguntando ao público quem quer calar a boca dela, sem deixar dúvidas que assumiram questionamentos pulsantes e os riscos do teatro performativo.

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“Os Saltimbancos”, por Carolina Lira | @caroladelira 

A “Cena do Drama – Companhia de Teatro Universitário da UNEMAT” traz para o palco uma dramaturgia construída a partir de experimentações da obra de Chico Buarque como instrumento de ensino-aprendizagem no ambiente acadêmico. A companhia buscou a inclusão de novos elementos artísticos e linguísticos para a montagem dessa peça teatral que apresenta um grupo de animais que enfrenta injustiças e desigualdades sociais.

Toda a peça é acompanhada por dois músicos que estão em cena e contribuem para que as narrativas sejam criadas e costuradas de uma maneira orgânica. Os figurinos merecem destaque pelas cores, texturas e beleza. O palco preenchido pelo colorido dos bichos, coro e músicos alegra os olhos.O elenco se mostra bem entrosado e atento, mesmo diante das diversas movimentações que ocorrem durante a realização da peça. 

A Cena do Drama retoma a obra de Chico Buarque e apresenta para o público uma montagem colorida, divertida e afinada em diálogo com um texto político e engajado em que os animais se unem no combate à exploração dos seus patrões e lutam contra desigualdades e injustiças.  

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“Submersos Particulares”, por Carolina Lira | @caroladelira

Após dois anos de isolamento social por causa da pandemia, Bruna Mondek e João Guilherme,  voltam a se encontrar em corpo e dança. O Duo SP, composto por Bruna e João, é um núcleo de pesquisa e produção e dança que se debruça sobre uma pesquisa autoral. Foi apresentado um trabalho potente e sensível no DançaMix, programação do festival Satyrianas dedicada aos espetáculos de dança.

Através da dança contemporânea a dupla constrói uma dramaturgia com o corpo para contar da busca que os orientou por um caminho enquanto eles estiveram por um longo período separados. O corpo como receptáculo de memórias relembra a distância vivida por ambos, a desorientação e a procura de caminhos. Toda a construção é cheia de sensibilidade, pois além da trilha sonora original composta para o espetáculo, são projetados vídeos com paisagens do interior das casas e áudios trocados por eles durante o tempo em que não podiam se encontrar presencialmente.

Enquanto os vídeos e áudios ilustram um cotidiano pandêmico e isolado, a necessidade de arrastar os móveis para dançar no chão da sala e o desafio de lidar com espaços reduzidos, em cena a dupla flerta com os apoios e desequilíbrios dos corpos, compartilha uma relação de intimidade, aponta a procura por um caminho. “Submersos particulares” é um espetáculo que consegue traduzir a busca por um encontro mesmo quando as dificuldades são imperativas.

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“Adágio”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Uma fala que se repete pelo tempo. O ditado e o clichê sempre capazes de prenunciarem ou desnudarem um costume – Eis a revelação do esqueleto de uma sociedade cujos valores aparecem em franca derrocada. Como visto, sob a luz pandêmica, alguns inusitados, terríveis, supreendentes e renovados contornos, mesmo quando imersos, ainda assim, nos aguardam quando a tragédia se revela – e aqui está o nosso ponto de atenção e luta: sabermos que a nossa resistência, mesmo quando permanente, também nos exigirá modos de recriação e renovação do combate.

A linguagem tartamudeia perante o hábito, mas as estratégias coletivas, sejam quais forem, recorrem sempre ao expediente narciso. Porque a Cultura, quando não analisada, revisada ou preocupada com as deixas que nos fazem seguir, porque nasce do contato entre estranhos e estranhas, procura espelhos ou fórmulas que afirmem toda a vontade de potência. E ela, a Cultura ocidental, quando disparada em despreocupada carreira, quer somente a neurótica repetição de si e, ato contínuo, a transmutação do outro em sombra, servo, figura submissa ou artefato inativo e pronto para cumprir ordens, achaques e caprichos.

Falta o ar, mas nunca faltam pessoas ou fragilidades que sejam deliberadamente sufocadas ou mortalmente vencidas por uma estrutura que, como na leitura, nunca deixa de girar. 

O mundo gira. 

Tudo se transforma e a mudança é permanente, mas o eixo se repete. 

É sempre a mesma baliza. 

Um constante veículo de contenção das verdadeiras revoltas. 

Como se nos quisessem revolucionando coisas sempre fixadas – para que a nossa revolta, adiante, sirva àqueles e àquelas que sobrevivem porque tomam copos deste sangue cuja hemorragia revela também a derrota e, pela via dos mercados, um produto bom, bonito e barato na prateleira da vida. Odiaríamos pertencer ao time de quem vence esta luta não somente desigual, mas cujos desejos pulsam uma artéria de morte e conluio entre o medo e pouca ou nenhuma comoção afetiva pela fisionomia do próximo. Mas talvez seja boa hora para dizermos que também temos odiado a parte dos vencidos e das vencidas.

O coração humano não conhece repouso.

– Sophia de Mello Breyner 

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“Pédê Folclore – Margens e Folclores”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

Em “Pédê Folclore – Margens e Folclores”, somos levados a uma viagem pelo tempo até a década de 20, quando uma destemida bailarina aportou em Cáceres, MT. Nessa época, a arte estava circunscrita às elites, e a dançarina ousava desafiar essa estrutura, sonhando em se apresentar na praça para toda a população de Cáceres, independentemente de sua posição social. 

Essa audaciosa aspiração serve como pano de fundo para a trama, que tece um intrincado contraponto entre a arte do passado e seu lugar na contemporaneidade.O espetáculo transcende as barreiras do tempo e da realidade, imergindo-nos em um mosaico de lendas, fantasia, música e dança. É como se as fronteiras entre o ontem e o hoje se desfizessem, revelando-nos um Cáceres que ressoa em lendas e mitos, onde o pulsar da música e a graça da dança ecoam pelas margens do tempo.

Além de ser uma experiência sensorial enriquecedora, “Pédê Folclore” ergue um espelho diante de nossos olhos, convidando-nos a refletir sobre o que mudou em nossa estrutura social ao longo dos anos. A peça é um alerta para questões sociais cruciais que ainda persistem em nossa sociedade. Ela expõe sem medo o poder nas mãos daqueles que detêm o capital, a exploração das camadas mais vulneráveis da população e, paradoxalmente, a resistência inquebrantável dessas mesmas pessoas.

O espetáculo é, acima de tudo, um ato de democracia cultural. Ocupa o espaço público, que, por vezes, foi tomado por elos frágeis quebrados por desigualdades. “Pédê Folclore” não apenas democratiza a arte, mas também a devolve à população, reafirmando que a cultura não deve ser confinada a platéias selecionadas. Em vez disso, ela deve ser compartilhada, experimentada e celebrada por todos.Nessa jornada emocionante e provocadora, “Pédê Folclore” nos convida a reimaginar o passado, a repensar o presente e a sonhar com um futuro onde a arte seja uma dádiva acessível a todos, onde as margens da cultura cedam espaço para um rio de folclores, e onde a resistência do Pantanal seja um testemunho da força da alma humana.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Um Tal Guimarães”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

Há poesia na simplicidade do cotidiano, nas histórias de pessoas comuns no interior de Minas Gerais e no interior do interior da gente, essa ‘gente que faz viver’. Em “Um Tal de Guimarães,” os personagens criados pelo autor João Guimarães Rosa o revisitam para tirar satisfação e, em algum nível, se vingar ou matar o escritor por tê-los criado assim como são, com características que os tornam singelos e, por isso, plenos da beleza do existir

O ator Vitor Peres cozinha, dança, canta, toma cachaça e experimenta ser ele mesmo numa atuação viva. A dramaturgia intercala reminiscências das personagens de Guimarães costuradas às do ator, que também viveu no interior de Minas Gerais, sugerindo que ele e sua história, bem como a nossa, também poderiam ser personagens de Guimarães se tivessem coexistido nesse espaço de tempo.

O que eleva ainda mais a produção é o uso autêntico do sotaque regional mineiro. O sotaque não é apenas um detalhe, mas um personagem na peça, uma entidade que une o público com as raízes culturais do sertão mineiro. Ele envolve o espectador em uma autêntica experiência sensorial, transportando a platéia para o interior de Minas Gerais.

“Um Tal de Guimarães” é uma celebração da riqueza do patrimônio cultural e regional. A peça preserva e promove a identidade e as tradições de Minas Gerais, enriquecendo a herança cultural do Brasil. Ela se torna um testemunho vívido da importância do legado cultural de uma região rica em história, linguagem e tradições.

A peça é uma experiência afetiva, destacada ainda mais pelo uso magistral do sotaque regional, que evoca o que a obra de Guimarães acessa na nossa humanidade e o quanto o simples do cotidiano se revela como grandioso em nossa jornada.

“Um Tal de Guimarães” é uma homenagem pulsante a uma das figuras literárias mais icônicas do Brasil, uma celebração autêntica da alma do sertão mineiro que pulsa em suas histórias e na própria performance.

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“Yaga – uma história para crianças corajosas”, por Beatriz Porto | @beatrizpfg

A Severina Cia de Teatro, de Pindamonhangaba (SP), apresenta a sua versão da história da Baba Yaga, figura controversa das narrativas orais eslavas por muitos entendida como uma sábia, por tantos outros como uma bruxa. Na versão da Severina, uma história que nos últimos tempos tem ganhado uma roupagem quase essencialista de um feminino mítico é singelamente desenrolada como uma narrativa sobre os medos e como enfrentá-los.

O grupo relaciona esse processo de enfrentar aquilo que nos assusta diretamente com brincadeiras tradicionais das infâncias. A peça começa com uma menina brincando de boneca e, nessa brincadeira tantas vezes vista de forma banal, percebemos a criança elaborando assuntos difíceis como a morte da mãe, o novo casamento do pai e a chegada de novas irmãs que a maltratam. Depois disso, em outra brincadeira, a menina percebe que sua boneca tem fome e decide ir atrás do fogo mágico e misterioso que poderá aquecer a comida de brinquedo que sua amiga faz – e assim elas decidem ir até a casa de Baba Yaga no meio da floresta buscar o fogo mágico. Todo o trajeto perigoso é vivido pelas duas meninas em forma de jogos tradicionais. A analogia é forte pelo que ela diz sobre o respeito à infância: brincar é um direito e, assim como ouvir e contar histórias, tem papel fundamental na forma de apreender o mundo com suas belezas e adversidades.

Quando finalmente chega a figura misteriosa que mora em uma casa com pés de galinha, lembramos que há certas coisas na vida que temos medo de conhecer e por isso parecem feias, mas que fazem parte do processo de crescimento. A menina, com ajuda de sua boneca que dá sopros de ideias no ouvido, vai aos trancos e barrancos passando pelas tarefas que Yaga lhe apresenta em um processo de ganhar coragem e confiança. 

“Yaga” costura de forma muito inteligente e irreverente o universo das brincadeiras tradicionais com o processo de crescimento e de se encorajar diante da vida que avança. Assim como as bonecas, a música das caveiras saindo da tumba (tumbalacatumba-tumba-tá), o faz-de-conta de ser a bruxa ou o rio caudaloso de barbante assinalam uma leitura de que experienciar a vida está no processo de vivê-la com imaginação e não de consumi-la em brincadeiras enlatadas. 

Impossível não mencionar também a beleza que representa a vinda do grupo para a cidade de São Paulo. A Severina Cia de Teatro vem às Satyrianas tensionando visões estereotipadas que se tem na capital sobre as formas de produzir no interior do Estado e, com excelente companhia de outros grupos interioranos de SP e outros estados que vieram ao festival, merece mais olhares, de mais público, em todas as cidades.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Bendita sois entre as Mulheres”, por Beatriz Porto | @beatrizpfg 

Renata Peron apresenta um show-narrativo em “Bendita sois entre as mulheres”. Costurando músicas populares brasileiras e episódios de sua vida, ela conduz nosso olhar por uma passagem do tempo que é significativa em evidenciar o que mudou ou não nas possibilidades de vida para a população trans e travesti brasileira. 

O modelo “depoimento pessoal” é usado aqui em seu formato mais cru: uma pessoa conta sua história, sem mitificação ou grande estetização. Essa escolha promove um encontro direto entre o público e a atriz em cena e proporciona um ambiente tão franco, que por vezes parece ser possível pedir que ela repita uma palavra que você não entendeu, fazer uma pergunta ou contar também uma história. O teatro parece, aqui, um ambiente seguro no melhor dos sentidos: um lugar onde se pode conhecer e ter dúvidas sobre o mundo e, em tantos casos como os narrados por Renata, ter um ofício que possibilite uma versão digna de histórias até então soterradas por preconceito e violência.

As músicas que tantas vezes ouvimos ganham ressignificação quando cantadas por ela. Letras que costumamos atribuir a um imaginário entre muitas aspas “universal” das dores humanas são redimensionadas quando Renata interpreta, tão atriz quanto cantora, “não vê que Deus até fica zangado vendo alguém abandonado pelo amor de Deus”. Assim, “Bendita sois entre as mulheres” transita entre o show e o teatro, entre a arte e a vida de forma a promover encontro e conhecimento.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Barba Azul”, por Beatriz Porto | @beatrizpfg 

Lígia Fonseca parte do conto “Barba Azul” para narrar uma experiência própria de um casamento abusivo. As escolhas dramatúrgicas – desde a premissa de apresentação de um programa culinário meio sanguinário até as imagens decorrentes das várias versões da fala “meu coração é um bosque” – dão conta da violência que está posta na mesa.

O argumento da peça revira a imagem arquetípica da mulher que sofre as consequências más do seu excesso de curiosidade – pegar a chave proibida que esconde os segredos do marido criminoso aparece de forma estranhada na imagem de uma possível Eva comendo o fruto do Paraíso. A justaposição aponta para uma percepção diferente sobre as representações femininas do imaginário religioso-patriarcal: o que há de ser, afinal, um “paraíso” que tem seu segredo proibido a uma mulher?

A peça vai, assim, aproximando imagens de asco e beleza para exprimir o horror do tema retratado: o cheiro e a visão das tripas do peixe versus o beijo e a dança, por exemplo, conduzem o público por uma sensação de náusea que fica presente na sala. Esses recursos, bem como o depoimento pessoal da atriz sobre sua história, conectam o trabalho às pesquisas artísticas que buscam borrar os limites entre realidade e ficção e falam sobre assuntos de ordem pública que muitas vezes são mantidos em segredos calamitosos.

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“Oblívio”, por Mariana Ferraz | @marianaferrazmf

Aparentemente inspirado no filme “Oblivion”, apesar de não informá-lo em sua sinopse, a peça “Oblívio” transita pelo hibridismo entre o teatro, a dança e a performance. De elementos provenientes das três artes, o jovem elenco propõe uma série de indagações existencialistas, que provocam e instigam no público reflexões acerca da sobrevivência humana, da solidão, do amor e da justiça social.

Destaca-se, como um ponto bastante positivo do espetáculo, os elementos técnicos de sonoplastia e iluminação – que garantiram o estabelecimento da densidade atmosférica necessária para acolher e estimular os atores em cena. Da escolha de figurinos, também, é importante se dizer: em tons acinzentados e cortes irregulares, o público é conduzido à flutuação entre o passado e o futuro, bem como ao interior e ao exterior de si.

Apesar do esforço perceptível do elenco – que sustentou com bravura, dentro das possibilidades, uma dramaturgia tão sinuosa como a desta peça –, é imprescindível mencionar algumas questões um tanto problemáticas no que se refere à encenação. Para citar apenas um deles, em virtude da síntese do presente formato: num determinado momento da peça, vê-se uma das atrizes no centro da ribalta esbofeteando o próprio corpo – sem a devida técnica, sujeitando a matéria ao risco –, enquanto o restante do elenco corre freneticamente pelo palco, esbarrando e colidindo por diversas vezes. Presenciou-se, inclusive, a queda de alguns deles por mais de uma vez – o que suscita, então, o questionamento sobre uma pauta conceitual inerente ao trabalho: o tal “risco performático” não diz respeito à exposição do elenco à possibilidade de danos físicos; mas a dimensões sublimes e subjetivas as quais, pelo ruído profundo supracitado, impediram que “Oblívio” chegasse.

Com os devidos reparos de encenação – colocar um elenco em risco não se justifica, em hipóteses alguma, sobretudo em se tratando de atores e atrizes tão jovens e possivelmente sem tanta experiência e traquejo teatral –, bem como com alguns ajustes de cunho técnico interpretativo, principalmente quanto à projeção vocal e à impostação de alguns membros do elenco – já que perdeu-se muito do texto por estas deficiências de exercício, é possível que “Oblívio” cresça em muito. Opina-se: vale a pena fazê-lo, reconfigurá-lo, repensá-lo – é um espetáculo com grande potencial, e com um elenco perceptivelmente apaixonado por aquilo que postula fazer.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Mulher, imagina!”, por Mariana Ferraz | @marianaferrazmf

“Mulher, imagina!”, do grupo As Olívias, é um espetáculo que apresenta, com inteligência, perspicácia e humor, a história de um grupo de três roteiristas que precisam desenvolver um roteiro para uma plataforma de streaming logo após a saída da quarta integrante da composição. Assim, Marianna Armellini, Renata Augusto, Sheila Friedhofer e Victor Bittow – o entregador de pizza/estagiário/demais outras personagens – tensionam e escandalizam, com requinte e traquejo elaborativo, as possibilidades de criação relacionadas ao universo humorístico.

O espetáculo é metalinguístico, eloquente, e revela a consistência de um elenco que labuta, persiste e cria em coerência e cumplicidade há uma boa leva de anos. Daí, então, o que se tem é uma peça extremamente harmônica, orgânica e convincente daquilo que se postula a fazer. Com uma linguagem prenhe de deboche, ironias e jargões do universo roteirista, As Olívias desempenham uma obra inteira, viva e com a qual se aprende um bocado. Sobretudo, quanto à delicadeza e a persistência do fazer artístico, da resistência no ofício teatral, da magnitude transtemporal dos signos da comédia. É mesmo uma peça e tanto!

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Dentro da noite veloz”, por Mariana Ferraz | @marianaferrazmf

“Dentro da noite veloz” é um texto maldito, na mais eloquente das acepções. Nele, uma estrela do rock é acolhida por uma sorte de doutor-interventor charlatão – um “especialista selvagem”, nas palavras do diretor Márcio Tito –, que busca ressuscitá-la após uma noite de excessos químicos, físicos e sexuais para que a mesma tenha condições de realizar seu próximo show.

Entre garrafas de vidro, potes plásticos, dejetos e reminiscências da esbórnia, a mulher encarna – em metáfora e arquétipo –, um sem-fim de adictos, marginais, perdidos e solitários que, quase sempre, encontram nos estratos da noite o seu refúgio maior. Do tédio absoluto à devastação da ressaca, do whisky à cocaína, de um coração partido ao sexo descuidado com absolutamente qualquer corpo que esteja disposto a lhe dar algo que possa remeter ao amor, o público coincide e assevera da certeza de, se não tê-lo sido, alguma vez ter conhecido um ente análogo à personagem de Thaís Grootveld.

Destaca-se, com louvor, a participação de Alexandre Gnipper e Big Band – conjunto que embalou a restituição física da estrela do rock quando a mesma, finalmente, teve condições de se levantar. Daí, então, uma profusão catártica entre instrumentos, urros, luzes e poemas encerraram a peça da programação DramaMix num portentoso clarão acústico. Afinal, é também disso que se compõe a noite: de um sem-fim de estímulos e disparadores que nos põem, sempre – tanto quanto a música – na delicadíssima dobradiça que intermedia a vida e a morte.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Pai Brasil”, por Douglas Ricci | @blogaus 

O que você sente quando vê um policial? Você se sente protegido ou você sente medo? pergunta o ator Renato Izepp no começo da peça Pai-Brasil. A resposta para essa pergunta revela o lugar social que se ocupa na sociedade brasileira, revela também o quão mergulhados estamos em maniqueísmos e não conseguimos ver as nuances que cada situação em particular nos apresenta. 

A peça nos oferece a oportunidade de olhar para uma narrativa que evidencia essas nuances através da reconstrução da trajetória de um policial militar. Seus desejos, afetos, relações estabelecidas, esperanças são evocadas e dão relevos e contornos a essa figura para além da ideia chapada do homem de farda. O policial, que também é pai, que também é marido,  religioso e amigo nos é mostrado através da narrativa de seu filho, o ator que está diante de nós.

Em precisa encenação de Rodolfo Lima, com poucos elementos em cena, apenas alguns objetos e peças de roupa, o espetáculo problematiza alguns pontos chave. O primeiro deles é as circunstâncias que formaram esse policial já nos últimos anos dos governos militares, depois é evocado os rituais dentro da organização, o vínculo que se estabelece e que não pode ser cortado com facilidade. A peça também problematiza as questões de fé, uma vez que a família do policial se torna evangélica e é traída dentro de casa pelo pastor da igreja.

Há alguns momentos de interação com o público, sendo um deles a imagem que mais me chama atenção na peça, quando o ator vai dizendo frases clichês sobre policiais e de policiais e a pessoa convidada se não concorda com o que é dito atira nele com uma arma de paintball com líquido vermelho manchando com as marcas do tiro sua camiseta branca. Acho uma emblemática imagem, com muitas camadas para leitura, por exemplo, de como estamos polarizados em nossos posicionamentos a ponto de atirar se não concordamos, mas também as marcas vermelhas dos tiros na camiseta branca nos remete às muitas vítimas da violência policial praticada diariamente pelo país afora. 

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“La Finestra”, por Douglas Ricci | @blogaus 

Uma viagem pela Itália. Ele vê ela em uma janela e se apaixona. Ela também é brasileira como ele, mas os motivos para estarem ali são bem distintos. Aos poucos o enredo desse encontro vai se desenrolando de maneira bastante peculiar, é narrado pelo ponto de vista de um e pelo do outro sobrepostos, em uma disputa de quem tem a verdade da narrativa. Obviamente cada um tem a sua, mas nunca puderam saber até estarem ali, no palco, em um tempo-espaço apenas possível na arte. Entendemos então que nunca puderam se encontrar e viverem uma paixão que nutriram mutuamente a distância.

É bastante perspicaz a ideia da narrativa sobreposta em um tempo-espaço outro, e aos poucos sendo revelada a história por trás da história, o ponto de vista que muda a partir de um outro ponto de vista, as disputas de narrativas até elas se encontrarem. Sim, porque é sobre desencontro, sobre possibilidade, que podia ter sido mas não foi. Cada um acreditou em algo e as narrativas não se encontraram. Até o momento de estarem no palco.

Os atores da leitura dramática são bastante carismáticos, combinam exatamente com as personagens, reforçando o caráter romântico da narrativa. Me parece ser uma daquelas peças que caem no gosto do público, fico curioso para ver como será a encenação dessa ideia, pois a dramaturgia sugere interessantes possibilidades de se contar essa história em cena.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Polaroid”, por Alexandre Gnipper | @alexandregnipper

Polaroid nos convida para um piquenique na praça com hora marcada. Em um clima de descontração entre amigos, comidas e bebidas são servidas entre público e elenco, remetendo a uma comunhão ancestral em torno da partilha do alimento. Os figurinos e o cenário em vermelho configuram o coletivo como um grupo, os caracterizando como condutores dessa experiência de partilha e comunhão. De tempos em tempos todos se juntam pra fazer uma foto, se o registro do momento perpétua a experiência no tempo ali ele também serve para desbotar a fronteira entre realidade e ficção, se toda a ação é programada a organicidade da relação com o público sobrepõe o aspecto de encenação, mesmo que nascida do próprio programa.

O projeto nos apresenta um tipo de teatro relacional que faz da ocupação afetuosa dos espaços públicos um instrumento de luta política. Contra um programa social do pragmatismo e do esvaziamento das trocas, em prol da funcionalidade de um sistema, o grupo contra ataca com um programa de ocupação afetuosa, transfigurando um ponto de passagem em um ponto de encontro, onde o acolhimento pela arte é uma arma contra a frieza e descaso do estado.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“A Noite um Pouco Antes da Floresta”, por Denizart Fazio | @denizartfazio

A leitura da peça de “A Noite um Pouco Antes da Floresta”, com concepção, direção e atuação de Vitor Placca e com co-direção de Camilo Schaden, é uma abertura de processo dos estudos que a dupla tem feito em torno do texto de Bernard-Marie Koltès.

A disposição irregular das cadeiras nas quais o público se senta para a leitura nos convida a outras maneiras de olhar. O ator sem palco passeia entre os espectadores, estabelecendo ao mesmo tempo intimidade e estranhamento. Intimidade pelo tom por vezes confessional que o texto apresenta, pela proximidade com a qual o ator nos acerca e nos endereça o olhar. Estranhamento porque as cadeiras estão em posições não convencionais e vemos o espetáculo de muitos ângulos diferentes. A sala, que possui um grande espelho em uma de suas faces, potencializa este efeito de multiplicação das formas de ver. 

Tais escolhas são bastante acertadas no encontro com o texto de Koltès. Texto difícil de ser encenado pela profusão discursiva, que por vezes soa delirante, e que exige do espectador uma força e uma disposição extra-cotidianas. Koltès parece buscar escavar espaços infinitos entre solicitações simples, entre um “eu procuro um quarto” e uma possível réplica de seu interlocutor. Ele faz multiplicar um discurso imenso – no limite infinito – a nos mostrar, em palavra, que é possível povoar um mundo inteiro entre uma sentença e uma réplica. Não se trata de simples capricho, mas, nos parece, trata-se de uma maneira de poder dar a ver melhor tantas coisas que se escondem entre as falas cotidianas. 

É neste intervalo discursivo que o texto de Koltès faz aparecer as questões, as opressões e toda sorte de violências enfrentadas por alguém estrangeiro. Na continuidade da frase mencionada, Koltès parece quase definir essa estrangeiridade violenta que ele, na peça, investiga: “é por isso que eu procuro um quarto, porque na minha casa é impossível”. Koltès parece querer habitar temporariamente, pela palavra, a própria impossibilidade de morada de um estrangeiro em lugares inóspitos. É uma proposição difícil que a atuação de Vitor Placca encara com coragem e beleza. As inúmeras nuances pedidas pelo texto: doçura, desespero, solidão, raiva, abertura, crueza, violência e tantas outras, são encarnadas por Vitor com desenvoltura. Nesta abertura de processo podemos perceber que uma excelente montagem deste texto, já clássico, se avizinha entre nós.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Klimkter”, por Denizart Fazio | @denizartfazio 

A peça-performance de Aline Fauth coloca em travessia aberta a experiência do climatério. A dança, o crochê e a subida em um monte, indicados pela atriz como marcos de seu programa performativo, são os guias para acompanharmos a peça. A dança com a qual somos recebidos é desenvolvida com beleza pela atriz, utilizando-se de um caixote de madeira. Quando a dança cessa, ela nos diz que há um ponto de partida etimológico: a palavra grega que nomeia o “ponto crítico”. 

O segundo marco é o crochê. Conta-nos a atriz, enquanto crocheta, que sua mãe tentou ensiná-la quando adolescente, mas que ela só o tomou em suas próprias mãos quando teve sua filha. Uma bonita trama intergeracional metaforizada pela roupa incompleta que se estende em cima da mesa. 

O terceiro ponto trata justamente da subida. Uma subida sempre é algo em três tempos: subir, chegar ao cume e descer. A atriz toma o caixote de madeira nas costas e performa a subida sisífica. Em seguida, assistimos a um vídeo de sua subida ao monte. Em cena, a atriz acompanha as imagens comendo muitos ovos que estão em seu colo, gesto performativo que prescinde de palavras e que instaura um lugar bonito e estranho, levando-nos ao “ponto crítico” que a peça almeja. Lição poética de que por vezes confiar no gesto traz melhores frutos do que apostar na reiterada explicitação. Um grande acerto da montagem é justamente quando os elementos apresentados não se articulam de forma unidirecional. Por mais que se explicite, há sempre algo que não se completa. 

Atravessamos a experiência com a atriz justamente pela falta, pelos lugares incompletos que se estabelecem, para além da discursividade que tenta compreender uma experiência – como a atriz nos diz – que ela não escolheu, mas que atravessa sua travessia no mundo.

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“Devaneios de Marias”, por Márcio Tito | @marciotitop 

“Devaneios de Marias”, para além de uma sólida atriz inspirada pela dor daquilo que denuncia, também apresenta um ensanguentado relato acerca do Brasil e da condição da figura da mulher e da criança ao longo de uma vida cercada por pais, tios, irmãos, namorados, maridos e homens que, para além de seus papéis sociais, traindo todo e qualquer código da empatia, configuram estupradores, mentirosos e opressores.

Tal obscura viagem ao pior do humano, mas ao mesmo tempo depondo acerca do Brasil profundo, relata um tempo de perigos e dores contra tudo e contra todas que tenham algum dado de fragilidade em suas identidades. A fragilidade do corpo da mulher em relação ao homem, e a fragilidade da voz da criança em relação ao texto dos adultos – tudo é partido para que o mais forte submeta, ameace e abuse.

No mais, jogando com a cena, é certo que o teatro apresentado talvez tenha desejado apresentar pouca poética para que, pelo choque, o real se configurasse com sua terrível fisionomia, contudo, com efeito, talvez as obras de arte tenham mesmo o dever de iluminar sombras e lugares de horror – mesmo quando nos pareça impossível qualquer revisão neste sentido.

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“Bronzes e Cristais”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

“Bronzes e Cristais” é um exemplo admirável do teatro de máscaras que mergulha na expressão teatral por meio do uso hábil e simbólico das máscaras. Inspirado na canção de Maysa, o espetáculo ilustra vividamente o contraste entre tristezas e alegrias, um tema intrínseco à condição humana.

O uso de máscaras nesta produção é notável, elas não são meros acessórios, mas extensões dos personagens de Carmem e Leonor, interpretados brilhantemente por Camila Rodrigues e Ingrid Taveira. O bronze, ilustra a solidão e tristeza que acompanham o envelhecimento, é habilmente expresso por meio das máscaras. As feições marcadas e os olhares melancólicos dessas máscaras capturam a essência dessa tristeza de forma comovente. Enquanto isso, o cristal simboliza os momentos de alegria e comunhão.

O teatro de máscaras sempre foi associado à exploração de arquétipos humanos, e “Bronzes e Cristais” não é exceção. Carmem e Leonor personificam dois estereótipos: as idosas cansadas e solitárias. No entanto, o brilhantismo desta produção reside na maneira como elas quebram esses estereótipos, revelando complexidade e profundidade em seus personagens. É um exemplo de como o teatro de máscaras pode amplificar não apenas características, mas também a quebra de expectativas, enriquecendo o impacto emocional da história.Além disso, o espetáculo destaca um elemento que raramente é discutido no contexto do teatro de máscaras: a temática LGBTQIAP+.

Ao abordar o tema, a peça faz uma afirmação corajosa. Ela não apenas reconhece a existência da comunidade, mas também demonstra a influência do preconceito e da proibição, que deixa marcas profundas, refletindo-se na tristeza (bronze) que as personagens experimentam.

Em última análise, “Bronzes e Cristais” é uma peça que fala poeticamente sobre todos nós. Ela utiliza as máscaras como um meio de amplificar a experiência humana, transcendendo os estereótipos e revelando a riqueza de emoções subjacentes. Essa produção é um testemunho do poder do teatro de máscaras em sua capacidade de tocar o coração e a alma do público, e, ao fazê-lo, nos convida a refletir sobre a profundidade das emoções humanas que todos compartilhamos. 

“Bronzes e Cristais” é, sem dúvida, um tributo inspirador ao teatro de máscaras e sua capacidade de contar histórias universais.

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Sprints Críticos – Deus Ateu | 15 de Outubro – Domingo

“Cheia”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

Entramos no elevador, todos desconhecidos. Amanda também entra, segurando um teste de gravidez nas mãos. Ela está notoriamente assustada e, ao deparar-se com a própria imagem no espelho do elevador, fita os próprios olhos, chora e se desespera. Amanda não consegue descer no andar do seu apartamento, nem conseguiria em qualquer lugar. Ela está vivendo aquela paralisia da reflexão do desespero. Compartilhamos a subjetividade daquele momento da personagem, em que a vida toda parece passar em questão de minutos. Observamos quando ela finalmente consegue sair, dando um abraço no porteiro, o mesmo que estava com ela naquele momento.

A escolha de colocar o público dentro do elevador nos aproxima da personagem, interpretada pela atriz Luna Martinelli, e do porteiro, interpretado por Zé Geraldo Jr. Estamos a poucos palmos de distância, talvez um pouco mais, enquanto Amanda está paralisada diante do seu reflexo. Assistimos também, pelo reflexo do espelho do elevador, o que traz nosso reflexo, misturando fantasia e realidade, tornando aquele momento mais humano.

É um recorte da realidade, assim como o texto é um recorte do livro homônimo de Natalia Zuccala. A parte narrativa é dita pelos próprios atores, como se as rubricas entrassem em cena e, mais uma vez, misturando fantasia e realidade, transformando a experiência em algo poético, potente e vívido.

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“Troianas”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

Em meio aos gritos ensurdecedores das mulheres que se tornaram escravas após a devastadora Guerra de Tróia, o Coletivo Ciranda Teatral habilmente tece a dolorosa tapeçaria da objetificação a que foram submetidas. Essas mulheres foram entregues à própria sorte, entregues aos homens vitoriosos, não apenas para servir seus desejos carnais, mas também para terem suas almas destroçadas.

A produção de “Troianas” não se limita a apresentar mulheres como vítimas, mas sim como forças da natureza, seres humanos fortes e honestos, que, entretanto, não conseguem escapar da cruel vulnerabilidade imposta pela força bruta e manipulação masculina. Esta é uma narrativa que atinge profundamente o público, provocando reflexões sobre o sistema que as reduz a meros objetos de prazer masculino.

O elenco, com suas atuações comprometidas e envolventes, leva o público a uma jornada dolorosa e transformadora. Cada palavra pronunciada, cada expressão facial e gesto corporal, é um testemunho da rica profundidade de seus personagens, destacando o talento da equipe.

“Troianas” é um chamado à ação, uma obra que expõe sem piedade a persistente inflexibilidade da sociedade em relação aos corpos das mulheres, que continuam a ser subjugados e violados de inúmeras maneiras. A naturalização da dominação masculina sobre as mulheres resulta em uma sociedade onde a identificação do abuso muitas vezes é tardia, devido a uma educação sexual que, de forma errônea, ensina meninos a explorar e sexualizar os corpos das meninas, enquanto estas são instruídas a se resguardarem e a servirem.

“Troianas” termina com as atrizes, de mãos dadas, caminhando lentamente em direção ao público, à medida que ouvem áudios de mulheres contemporâneas compartilhando suas experiências de abuso em diferentes situações e fases da vida. Isso cria uma imagem poderosa de unidade e solidariedade, convidando o público a se juntar a essa causa fundamental.

Esta peça é uma voz contundente na luta contra a opressão de gênero e o abuso. “Troianas” deixa uma marca indelével na consciência de quem a assiste e, com sorte, despertará uma mudança profunda na sociedade em relação às questões de gênero.

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“Transgressão”, por Luiz Vieira | @luizvieira.art

Transgressão, texto de Morgana Olívia Manfrin, que fala sobre as dores de corpos dissidentes em um país intrinsecamente transfóbico, é como um soco no estômago: dói, demora passar. Interpretado pela atriz negra e travesti, Cauane Nogueira, a leitura dramática aproxima ainda mais o público de quem fala, pois tranquilamente poderia ser um texto escrito pela própria Cauane, que sabe bem dessas dores.

A performance da atriz, que deixa seu corpo livre no espaço, é um convite para um lugar de escuta. Quantas travestis terão que morrer para que esse ciclo maldito de violências seja interrompido? Quais são os corpos que querem se relacionar com uma travesti para além dos encontros sorrateiros? Quem ama uma travesti? Quem defende a existência de uma travesti? Quem convida uma travesti para um almoço de domingo em casa?

O texto de Morgana é um manifesto. Um grito. Uma denúncia. Busca respostas. Procura saídas. Questiona o (cis)tema. Convoca. Cauane faz parte desse movimento, dessa nova geração que também busca um lugar menos insalubres para corpos como o seu. 

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“A galinha Nanduca”, por Beatriz Porto | @beatrizpfg

Em “A Galinha Nanduca”, dois palhaços contam a história de uma galinha que fica famosa por ter dentes de gente e precisa fugir dos paparazzi e fãs. Nesse trajeto de fuga, a galinha vai conhecendo diversos lugares da cidade de São Paulo e pessoas tão famosas quanto ela, como Neymar e Anitta.

Ao final da peça, a galinha aprende que ter milhões de seguidores não é a coisa mais importante do mundo, o que poderia ser um argumento interessante para se tratar em um teatro para infâncias e juventudes, especialmente por se relacionar com o público que está crescendo com as implicações diretas da vida nas redes sociais. Contudo, essa temática carece de maior aprofundamento para que seja tratada com coerência. As aparições de Neymar e Anitta, por exemplo, que poderiam ser momentos chave para entendermos essa leitura sobre a peça, não apresentam ponto crítico sobre a indústria de personalidades “instagramáveis”.

Além disso, a peça se vale de um tipo de humor que vem sendo questionado e revisto há muito tempo. Personagens como “a esposa” e “os orientais” são tratados de forma não só pejorativa como generalizante, em uma visão que reforça preconceitos baseados em estereótipos de gênero e etnia. 

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“Aqui não é Moscou”, por Douglas Ricci | @blogaus 

Os atores e objetos de cena cobertos como móveis em imóveis fechados é a primeira imagem que o espectador tem do espetáculo Aqui não é Moscou. Quando a peça começa, a sensação é de que adentramos um desses imóveis e começamos a descobrir os móveis cobertos e empoeirados que vão revelando suas formas, cores e funções. E se esse imóvel fosse a Casa na Província de Macha, Irina e Olga de As três irmãs de Tchekhov? Como olhamos daqui do alto do século XXI para Tchekov e seus escritos de mais de um século atrás? Como o mundo que temos dialoga com o mundo de então? 

A Cia Grite de Teatro, sob direção de Kleber Lázzare nos propõe imaginar esse diálogo, endereçando cartas dos atores ao autor russo, contando como vivem suas experiências aqui no planeta Terra, seriamente abalado por questões climáticas provocadas pela ação humana, depois de tão desenfreada e irresponsável evolução mecânica, tecnológica, financeira. O quanto evoluiu? o quanto é mais do mesmo? o quanto regrediu? É muito interessante  a conversa desses jovens atores do sul global do século XXI com o russo do século XIX, nos faz pensar em tudo o que aconteceu no mundo de lá pra cá e concluir que estamos, como já era sabido a muito tempo, à beira de um abismo.

A encenação da peça também propõe esse diálogo do hoje com o ontem do século XIX, se utilizando de figurinos elitizados misturando cortes, tecidos e texturas que remetem aos tempos idos na antiga Rússia mas que também soam como roupas de desfile de moda. As cores em paletas de cinza com pinceladas de vermelho, nos dá a ideia de olhar fotografias antigas. Sinto um pouco de falta de trilha sonora para emoldurar alguns climas que a peça propõe, bem como uma iluminação mais precisa e recortada acompanhando o ritmo das cenas e enunciação dos atores. 

Acho muito interessante um amontoado de lixo, típico das calçadas de nossas cidades, que se acumulam no palco, seria a herança que deixamos para os jovens atores de daqui cem anos?

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“Elemento Vermelho sobre o Verde”, por Douglas Ricci | @blogaus 

Uma figura completamente coberta, com a cabeça, o rosto, as mãos, os pés, toda coberta de tecido e tinta vermelha se desloca por entre as árvores da Praça Roosevelt. Se desloca lentamente por entre as árvores e interage com elas. As pessoas passam, olham e se perguntam o que seria aquela mancha vermelha emaranhada no verde das folhas das plantas e árvores. 

A figura tem um corpo para além do humano. É como uma entidade que brotou na praça no fim da tarde fria de domingo, no último dia do Festival Satyrianas. Onde acaba as mãos e onde começam os pés? É um rosto por baixo de todo esse vermelho? É um corpo? É uma cor em movimento? É o que se vê. Vermelho sobre o verde, ao som da cidade.

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“Eu não sou Fernanda Young, mas quero tentar”, por Douglas Ricci | @blogaus 

Uma mulher traída, dopa e amarra seu amante para exercer sobre ele uma vingança maligna: inutilizar seu órgão sexual para que nunca mais ele fique ereto para adentrar buracos de carne de nenhum outro ser. Esse é o mote do livro O Pau de Fernanda Young, onde Marcelo Oriani vai beber e se encharcar para construir seu Eu não sou Fernanda Young, mas quero tentar, leitura dramática apresentada no último dia do Festival Satyrianas.

A espetacular e saudosa escritora Fernanda Young escreveu diversos romances. Ficou bastante conhecida por seu trabalho com séries cômicas de TV, assinando os roteiros com seu marido Alexandre Machado, onde o humor, o jogo de palavras e situações da vida contemporânea são mostradas pelos seus ângulos mais ridículos e absurdos. Acredito que Marcelo Oriani capta um tanto desse ritmo de enunciação das ideias e piadas em seu texto, se aproximando bastante do estilo de escrita de Young.

O cativante enredo do texto, no entanto, me parece estar muito próximo do que encontramos no romance O Pau, o que me faz pensar no porquê desse texto. É uma adaptação? É uma homenagem? É apenas um exercício de reescrita? 

Como distorcer, como sombrear, como mastigar e antropofagizar algo que admiramos muito? Que camadas da experiência do autor podem ser postas ali para além do que a obra fonte apresenta? Acho muito interessante trabalhos que partem de outras obras para estabelecerem seus discursos, mas neste ainda sinto falta de um desdobramento para além das questões que a escritora já nos coloca em seu livro.

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“Desatinos”, por Ed Costa | @oxente_ed

“Desatino”, ausência de tino, de bom senso, de juízo. É nessa atmosfera que Gerson Lobo entra em cena em um espaço quase vazio, que ele preenche com maestria ao transitar pelos múltiplos personagens da série de microcontos teatrais que compõem o espetáculo.

Escrito pelo pernambucano Samuel Santos, “Desatinos” reúne narrativas dramáticas que abordam a loucura, o preconceito e angústias individuais. Acompanhado apenas por um banquinho, um tecido e pela violinista Rafaela Ferreira, Lobo traz para o corpo a responsabilidade de dar vida a essas histórias.

O primeiro conto, “O Alfaiate”, aborda com sensibilidade questões de identidade de gênero, preconceito e aceitação. Manoel Flor, o protagonista, enfrenta discriminação devido à convivência com seu pai homossexual e sofre com brincadeiras preconceituosas de seus amigos. A história evolui quando ele se apaixona por uma mulher, cuja identidade se revela uma reviravolta impressionante, obrigando-o a confrontar seus próprios preconceitos e aceitar um amor “híbrido”. Em “Menino Demoníaco”, o narrador compartilha lembranças perturbadoras de uma infância cruel e destrutiva, expondo o lado sombrio de sua personalidade e nos fazendo refletir sobre o impacto do ambiente familiar em seu comportamento.

Em “O Açougueiro”, somos levados a uma trama macabra, onde Seu Antônio, o açougueiro, tem a vida entrelaçada com uma prostituta que se torna sua esposa. O conto explora o preconceito da cidade com o relacionamento dos dois, que culmina em uma reviravolta chocante, que tempera o clima de suspense com tragédia e vingança. “Amor Híbrido” encerra o espetáculo tocando em questões de identidade de gênero e orientação sexual, narrando a jornada de autodescoberta e aceitação de uma protagonista cuja ambiguidade é explorada desde o nascimento. A história se desenrola com sensibilidade, abordando o conflito interno e o desejo dela de encontrar a felicidade no amor.

O encerramento do monólogo é marcado por um encontro inesperado entre dois personagens, contribuindo fortemente para a coesão da atmosfera única que permeia todo o espetáculo e ressoa de forma impactante no corpo do ator ali presente. “Desatinos” é uma peça provocativa e sensível, que desafia as normas tradicionais e explora temas profundos da natureza humana. A atuação de Gerson Lobo é um testemunho da força da arte teatral e sua capacidade de provocar emoções profundas no público.

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“10 minutos de lucidez”, por Tiago Horbatow | @horbatow  

Memórias de uma relação afetiva dão o tônus deste trabalho de intersecção entre corpo, dança e palavra que, apesar de narrar uma experiência particular, ainda é bastante plural quando contextos e diálogos perpassam a realidade de indivídues e pares; produzindo, assim, reconhecimento instantâneo na plateia. Permeada pela atmosfera de romance incitada por letras e melodias do pop da contemporaneidade, 10 minutos de lucidez se estabelece no tempo-espaço-vivência de quem a acompanha.

Abundante em discursos complacentes mesmo em instantes de conflito, a interação entre figura homem e figura mulher se sustenta em códigos sociais enraizados no que se configura e estabelece, ontem e hoje, como sociedade. Uma TPM é minimizada com brigadeiro de panela, o café é sempre mais fresco e saboroso para o sujeito homem em cena. As dores e conflitos dela pouco impactam a confortabilidade do sujeito ele.

A temporalidade decrescente da história não é explicitada, mas se faz percebida nas viradas de cenas e atos engenhosamente pensados para produzir momentos de euforia e respostas quase instantâneas aos questionamentos que permeiam o imaginário do espectador. Com recursos simples de iluminação e cenografia, 10 minutos de lucidez se finda de maneira preciosa ao responder o conflito central da dramaturgia – uma  vez contada, a história permanece viva.

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“Gestação de Cam”, por Tiago Horbatow | @horbatow

Três lavadeiras negras se ocupam de suas funções enquanto resgatam e constroem narrativas de um passado-presente-futuro que, apesar de distintos em temporalidade, são inegavelmente pré-determinados, semelhantes e previsíveis. Não à toa compartilham o mesmo nome, e não à toa tecem em palavras e cantos o ímpeto de se reconhecerem sujeitas. 

Da consciência sobre a marginalização de seus corpos, postos em camadas sociais subalternizadas, as Cam evidenciam conflitos internos vivenciados por suas identidades e provocam a lucidez da plateia ao interligar estas perspectivas ao projeto de sociedade em curso. Conectando falas e questionamentos às raízes de sua ancestralidade, o elenco atravessa a plateia com angústias e desejos de outras realidades possíveis; direcionando a história para o conflito central que é o medo de gerar e parir uma criança “da cor da noite”.

Gestação de Cam é uma construção abundante, pujante e necessária da memória-território de mulheres negras e do firmamento e importância de suas existências. 

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“Joãozinha Desviada”, por Tiago Horbatow | @horbatow

Posicionada em frente à platéia, uma figura humana narra seu encontro com a morte. Não sua, mas daquele que é algoz e herói na mesma medida – e intensidade, dentro da história; seu pai. Driblando a convencionalidade de um monólogo, a figura estreita a distância entre palco e plateia com falas construídas em tom de relato, permitindo aos espectadores exercer a escuta em qualquer que seja o contexto produzido por seu imaginário. Numa mesa de bar, no banco traseiro de um táxi ou no caminho até a padaria da esquina, cada palavra evidencia a simplicidade de uma conversa corriqueira entre pessoas que há muito se conhecem. 

Buscando significar o conceito de masculinidade, a figura logo dá espaço à personagem formiga, que diferentemente dos trejeitos humanos de seu antecessor, ganha liberdade poética ao revelar sua vontade de ser sujeito-homem – mesmo que, na mesma medida, entenda a complexidade de se estabelecer nesse lugar. 

É nessa atmosfera de signos e significados que Joãozinha Desviada evoca a presença do pai, brinda a ele, traça paralelos da própria vivência com obras de Nelson Rodrigues e Nelson Gonçalves e convida a plateia a sentir saudade. Sejam a masculinidade, a conturbada relação familiar, o agente social de identidade homoafetiva, o luto ou a palavra não-dita os elementos centrais dessa construção, o que acaba por reverberar em quem compactua com o ritual de saudade e despedida é a certeza de que, em algum momento – ou em vários deles – todes performamos e performaremos a figura da formiga no âmbito coletivo independente de nossas individualidades.

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“Votos de Afeto”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Com inteligência e estratégia, apresentando não a clara e gritada fisionomia do opressor, mas as nuances, as delicadezas e as bordas de um retrato atento e sombrio, Angela Ribeiro fez da cena um efetivo relógio capaz de pautar o pior da evolução de um casal cujo destino, como só o Brasil sabe, poderia muito bem ser a morte em tons de feminicídio.

Nuançado e muito bem equilibrado entre a eminente tragédia, a percepção teatral acerca do que se faz no palco e uma boa carga de sagazes e objetivos diálogos, como raras vezes se viu, Votos de Afeto chegou ao Dramamix já com encenação perfeita, elenco afiado, texto oportuno e dinâmica cênica profundamente bem trazida. 

Pouco há para ser dito enquanto questionamento acerca da construção, sobretudo porque o trabalho já nasceu surpreendentemente bem pautado e arejado por uma poética livre dos inumeráveis questionamentos formais deste tipo de construção.

Votos de Afeto configura um teatro tão político e femininista quanto bem armado, inteligente, denso e nítido. Uma das mais gratas surpresas do festival e, de certo, no futuro, uma encenação e dramaturgia que confirmaran mais uma vez Angela Ribeiro como sendo uma das mais destacadas vozes de sua geração de autoras e atrizes-diretoras.

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“A decisão”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Sempre entendi que Brecht fosse, para além de seus temas, um autor capaz da elaboração de chaves de pensamento e leitura para gerações que precisassem lidar dialéticamente com as contradições de suas épocas. Logo, no contexto de uma montagem trazida por um aguerrido time de crianças e jovens, em um tipo de experiência inédita, Brecht, de modo geral, aparece em sua potência máxima pois, quando enunciado por almas ainda sonhadoras, cada uma de suas palavras, ideias, teorias e práticas encontra um ambiente social absolutamente mais real e capaz de profundas visitas ao expediente das transformações fundamentais.

A dramaturgia de A Decisão apresenta um mundo em constantes movimentações sociais, econômicas e ideológicas, sendo assim, pelo contexto brasileiro, tal conjunto de pulsões aparece resignficado pela força de uma infância e juventude que deixou de ter direto a não participar das questões do futuro, portanto, em um brilho tão particular quanto coletivo, social e cultural, a presente montagem, com todas as suas fragilidades tornadas potências, revela uma das mais oportunas e mágicas realizações teatrais do nosso mais recente teatro brasileiro.

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“Eu Não Sou Fernanda Young, Mas Quero Tentar”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Reproduzindo machismo mas também revelando um espírito cuja infinita busca pelo amor fez perder as cores e a leveza da alma, uma personagem empodera-se na direção equivocada e passa a ocupar o papel do opressor. Assim, entre bons momentos cômicos e questionamentos de fato muito pontualmente trazidos pelo autor, mesmo com a ótima química do casal principal, a dramaturgia apresenta certo desequilíbrio quando, tentando cumprir expedientes demasiado populares, por engano, visita certo narcisismo da personagem que sequestra o próprio noivo. 

Todo este movimento de exaltação da sombra, embora de início surja como ótimo chamariz, adiante, torna-se um pouco atabalhoado entre os aplausos que festejam posturas problemáticas e, ato contínuo, o que realmente há de liberto ou libertador nos gestos da figura. Sendo um Dramamix e havendo sempre a possibilidade da obra estar em pulso para dar-se às possíveis mudanças, vale dizer que os cortes temporais parecem muito mais bem-vindos do que algumas falas cujo teor se pretende demasiado disparado por um uma lírica feminina acessada somente pela via de alguns clichês ou frases que parecem partes de piadas reunidas ao longo da pesquisa. Destaque para os ótimos diálogos cuja fluência encanta – e aplausos para a boa química e técnica da dupla Flávia Mirassos e Felippe Salve.

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“Inferno”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Bastante esquemática, com elenco regular e ótima moldura sonora e musical, Inferno, embora fracasse no título incapaz de trazer Nelson aos olhos, é um ótimo espetáculo coletivo e, de modo geral, entrega positiva e boa amostragem não acerca das personagens do autor, mas sobretudo em direção ao esquivo, complexo e denso coração do dramaturgo e cronista.

A ideia de “inferno”, muito capaz de nos tangenciar na direção de um lugar livre de esperanças, poderia ter parado na antessala, afinal, para as contradições rodriguianas, a ideia de um purgatório qual todos e todas viverão suas obsessões, como mostram sobretudo os textos de A Vida Como Ela É, parece muito mais adequada.

Para além, festejando o bom e suficiente produto da montagem, caiu bem ao festival uma operação que trouxe um material tão tradicional aos feitos que aproximamos dos artistas que tradicionalmente visitam a obra de Nelson. 

Como poucos, e assim confirmando também a sua proposta estética, Nelson habita o nosso imaginário para além de sua poética particular, mas também, para além de si, pela via de uma construção cultural dada pelas variadas montagens semelhantes entre si. E tudo isso parece mesmo uma bonita, importante e vivaz confirmação cultural e espiritual dos melhores “clichês” trazidos pela potência de Nelson Rodrigues.

Aplaudo que tão numeroso grupo tenha sabido ler Nelson pelas lupas mais dignificantes de sua extraordinária dramaturgia, pois é preciso dar a ver o que há de humano e brasileiro em suas imprescindíveis aventuras formais e, sobretudo, mundanamente cotidianas e reais.

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“A Maldição de Medéia”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Com esmerada e bem conduzida encenação, suficiente elenco e proposta de atmosfera correta, A Maldição de Medéia expressa, para além dos bons momentos diretamente trazidos pelo texto original, algumas esdrúxulas percepções estéticas, históricas e sociológicas acerca da figura clássica. 

A percepção de uma possível crueldade na figura da personagem eternizada por Eurípides, combatida por inúmeras leituras e outros estudos, revela uma personagem vitimada por uma sociedade altamente nociva – e a morte das crianças, desencontrada dos valores do cristianismo contemporâneo, não apresenta conexão com pautas da atualidade (como insiste o supracitado espetáculo).

É importante sabermos que as infâncias foram brutalmente reconfiguradas ao longo da história, bem como a sociedade grega, com seus valores e méritos e desvios, se posta sob a lupa do hoje, perderia em ganhos e nos pareceria absolutamente descartável. E realmente demoro a perceber o que é que se ganha, do ponto de vista da cultura, quando tantas realidades disputam o mesmo espaço. Pautas sociais, espiritismo, feminismo e um sem fim de outras lutas, na aproximação com o mito de Medéia, em chave moral e criando uma vilã em cena – procuram exatamente qual destino e realizam em corpo e alma qual tipo de discurso válido para o mundo atual?

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“O Presente de Carluxa”, por Márcio Tito | @marciotitop 

Revivendo um importante lugar do festival e abrindo ao público um texto tão bem armado quanto elegante, despretensioso e em cima da hora do país, Sérgio Roveri elabora uma ótima “fábuladark” acerca de uma gente cuja vida torna-se sempre mais difícil quando o bom senso aparece por debaixo da porta, nos jornais, pelos elevadores ou na sonoridade dos autofalantes espalhados por aí.

Partindo daquilo que há de mais humano em figuras cuja humanidade aparece tragicômicamente torcida entre o remorso e uma profunda necessidade de revolta contra toda forma de ética, O Presente de Carluxa é uma impiedosa e festiva explanação acerca das contradições de uma família atordoada por crenças absurdas. 

Com ótimo elenco e direção acertada e bem cuidada, os procedimentos do texto, nítidos e técnicos em mais de uma camada, abrem caminho para um riso especialmente pensado para o teatro – e torna-se curioso perceber como o lugar da cena, sua doçura e agudeza, sua forma e seu deboche, sobretudo quando defendido por um par de bons intérpretes, não precisa estar sempre atrelado aos formatos disruptivos ou compulsoriamente interessados em mirabolantes revisões da linguagem. 

Carluxa é um teatro tradicionalmente realista, dramático, com forte assinatura jornalística e eficiente arquitetura de autor vocacionado e com sólida experiência provada com efeitos honestos e viradas deliciosas. O material deve ganhar apresentações intimistas, formatos enxutos e variadas outras emanações, afinal, para recapearmos o senso coletivo, dando a ver a existência de um país de artistas e cronistas atentos e atentas ao contexto de loucuras que vivemos e sobrevivemos, nada mais saboroso e bem-vindo do que uma dramaturgia cujo enfrentando do outro, sem capitulação, apareça trazendo o riso e as melhores e mais sintéticas armas que o bom teatro ainda nos oferece.

Uma das mais bem acabadas e eficientes oportunidades do festival em 2023.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Rosalinda”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

A peça infantil  “Rosalinda” se estabelece como a arte da palhaçaria, uma forma artística singular que captura não apenas a imaginação das crianças, mas também a de adultos. 

Neste espetáculo, somos imersos em um mundo repleto de características distintas do teatro de palhaços.O enredo central gira em torno de Rosalinda, uma contadora de histórias, cuja vida toma um rumo inesperado quando se enreda em uma confusão cômica protagonizada por três palhaços. É aqui que a essência do teatro de palhaços se revela em sua plenitude. A comédia física é habilmente empregada para criar uma atmosfera de hilariante caos que, de forma típica dos palhaços, transcende a barreira da língua e da idade.A cena da briga entre os palhaços, com seus movimentos exagerados e sequências cômicas meticulosamente coreografadas, é um exemplo vivo das raízes tradicionais do teatro de palhaços.

Este estilo de atuação é conhecido por transmitir mensagens profundas através do humor, e “Rosalinda” não é exceção. No desenrolar da história, somos conduzidos a uma reviravolta marcante, quando uma das palhaças, que inicialmente mente e culpa o amigo sobre a quebra do brinquedo do outro, é compelida a enfrentar um dilema moral. Este é um dos momentos em que o teatro de palhaços revela sua capacidade de abordar questões importantes por meio do riso.

“Rosalinda” é uma experiência teatral que mergulha na riqueza do teatro de palhaços. Os personagens carismáticos, a simplicidade da cenografia e a mensagem sobre a importância da verdade são amplificados e enriquecidos por essa tradição artística. 

O mundo dos palhaços vai além do riso fácil, e, em seu âmago, nos lembra de nossa humanidade compartilhada.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Desatinos”, por Thamíris Dias | @thamiris.dias_

A peça “Desatinos” mergulha fundo nas águas turbulentas da sociedade, expondo a fragilidade das fronteiras que definem a loucura. Através de uma performance brilhante, o ator Gerson Lobo, acompanhado pela trilha sonora dramática do violoncelo, leva o público a uma jornada íntima, com apenas um tecido, um banco e a potência de seu próprio corpo como aliados. Esses objetos aparentemente simples se metamorfoseiam ao longo do espetáculo, transformando-se em símbolos poderosos que dão vida às histórias que se desdobram diante de nossos olhos.

“Desatinos” destemidamente desvenda a cortina que oculta temas tabus da sociedade, tais como prostituição, homossexualidade, paternidade e sexualidade. É uma obra que desafia a estrutura patriarcal e heteronormativa, oferecendo uma visão única a partir da perspectiva de corpos masculinos e intersexuais. Nessa audaciosa exploração, a peça sugere que o preconceito e a intolerância são forças que não apenas segregam, mas também geram sofrimento e desequilíbrio mental.

Este é um espetáculo que não se esquiva de abordar questões urgentes e cruciais, que são muitas vezes evitadas pelos holofotes da sociedade. “Desatinos” desenha um panorama corajoso, crítico e necessário, cujo impacto ressoa como uma onda poderosa através da atmosfera teatral. Esta é uma peça que incita não apenas o pensamento, mas também a ação, e nos lembra que desvendar a loucura social é o primeiro passo para transformar a sociedade.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.

“Coração vermelho em brasa”, por Carolina Lira | @caroladelira 

A apresentação compartilhou com o público um universo de cenas curtas entrelaçadas pela atmosfera inebriante da paixão. A iluminação trouxe luzes vermelhas. Cada cena trazia uma narrativa com questões ligadas à sexualidade bastante presentes. Uma advertência implícita: paixões que ardem podem ser perigosas, muitas vezes o fogo queima, fere, machuca.

Cenas singelas como a escrita de cartas de amor em um cenário composto com delicados móbiles de tsurus, deixam que o público atento anteveja: paixões podem ser frágeis. Foram trazidos alguns relatos comoventes e corajosos, histórias sobre paixões, sexo, dores, vida. Algumas cenas trouxeram uma carga poética pulsante, é bonito e melancólico ver que o tempo da paixão se esvai vertiginosamente como a areia da ampulheta.

O elemento fogo se faz presente na cena. Ao final, os atuantes manejam fósforos que se apagam e se acendem freneticamente.Essa ação vai se propagando em um ritmo alucinante. No jogo cênico, o perigo de brincar com fogo. Dentro e fora dele: o perigo de se entregar às paixões.

Este texto é parte do projeto SPRINTS CRÍTICOS, elaborado pelo site Deus Ateu com parceria com a produção do evento | @deus.ateu.